A denúncia foi feita em abril de 2014 à Inspeção Geral de Atividades em Saúde (IGAS). José Fernandes e Fernandes, então diretor do Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria e então diretor da Faculdade de Medicina de Lisboa, era denunciado como tendo autorizado “a colocação de endopróteses vasculares, sem critérios, mediante a obtenção de vantagens patrimoniais dos fornecedores” daqueles dispositivos médicos. Acrescentava ainda a denúncia que as principais empresas fornecedoras das endopróteses “subsidiavam” aquele médico entretanto aposentado e que teria havido um “incremento inexplicável e extraordinário dos custos” do hospital com a compra de endóproteses vasculares.
José Fernandes e Fernandes foi depois constituído arguido por suspeitas de corrupção, abuso de poder e recebimento indevido de vantagem. A sua casa chegou a ser alvo de buscas pelo Ministério Público, que também analisou as suas contas bancárias e as de uma empresa de que é sócio, juntamente com a mulher e os filhos. Optou por não prestar declarações no processo. Agora, a 11 de Janeiro, a procuradora Ana Paula Vitorino, do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa, decidiu arquivar o inquérito por falta de indícios suficentes que permitissem levar o caso a julgamento.
O despacho final de encerramento de inquérito, a que a VISÃO teve acesso, concluiu que, de facto, houve “um aumento significativo” no valor do consumo anual de endopróteses no Hospital de Santa Maria, “após a assunção da direcção do serviço por José Fernandes e Fernandes”. Em 2010 e 2011 o hospital gastou cerca de 672 mil euros nesses dispositivos (312 mil em 2010, 370 mil em 2011). Em 2012 esse valor subiu para 421 mil euros, em 2013 para 607 mil euros, em 2014 para 833 mil euros e em 2015 para 891 mil euros. Entre 2012 e 2015, o hospital comprou 295 endopróteses, no valor global de 2,76 milhões de euros. 215 dessas endopróteses foram compradas à mesma empresa – a Biosonda – que só com as encomendas do Hospital de Santa Maria ganhou mais de 2 milhões de euros. As restantes foram adquiridas à Medtronic Portugal, Medinacinália Cormédica, Johnson & Johnson, J.M. Farmacêutica SA e Lusopalex. José Fernandes e Fernandes foi diretor do Serviço de Cirurgia Vascular do Centro Hospitalar Lisboa Norte – Hospital de Santa Maria – entre 28 de agosto de 2012 e 11 de dezembro de 2016 (data em que se aposentou por limite de idade). Segundo o despacho de arquivamento, a aquisição das endopróteses era efetuada sem concurso. Mediante relatórios médicos que reportavam essa necessidade, o diretor do serviço fazia uma avaliação e decidia qual “o tipo de endoprótese a aplicar e o fornecedor”.
Em 2013, face ao aumento das despesas com a aquisição daqueles produtos, o hospital fez uma consulta de mercado e concluiu que a Lusopalex era a empresa que oferecia os melhores preços. Na sequência desta descoberta, o conselho de administração do hospital pediu a José Fernandes e Fernandes que fundamentasse a sua preferência pelas endopróteses da Biosonda. O médico justificou-se com “os resultados obtidos com a sua utilização a nível nacional e internacional”, resultados que dizia garantir “eficácia, durabilidade e segurança para os doentes”. Ainda assim, disse que para alguns casos se deveria manter como fornecedores a Medtronic e a Medicinália, ao mesmo tempo que se deveria tentar renegociar os valores com a Biosonda, representante exclusiva, em Portugal, da Cook Medical, uma empresa americana que se dedica ao comércio de artigos e equipamentos hospitalares, entre os quais as endopróteses vasculares.
A investigação do DIAP de Lisboa, coadjuvada pela Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) da Polícia Judiciária (PJ), confirmou ainda outras ligações entre a Biosonda e o médico. A empresa patrocinou pelo menos cinco fóruns internacionais sobre doenças vasculares, que se realizavam em Lisboa, e que eram organizados pela Angiomédica, uma sociedade por quotas detida por José Fernandes e Fernandes, a sua mulher e os seus dois filhos. Em 2012, de acordo com o despacho do Ministério Público, a Biosonda ofereceu 8672 euros para o evento. Em 2014 ofereceu 10 mil. O mesmo despacho do DIAP de Lisboa revela que a Biosonda comprou à editora 125 exemplares do livro “Nó Górdio”, da auditoria de José Fernandes e Fernandes.
No processo de inquérito da IGAS, José Fernandes e Fernandes explicou que quando assumiu a direcção do Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital de Santa Maria “assentou a necessidade de promover o tratamento endovascular dos aneurismas, e da restante doença arterial, segundo as regras da boa prática médica internacionalmente aceites para o tratamento” daquelas patologias, o qual “implicava o uso de endropróteses arteriais”, pois “a sua utilização” reduzia “a mortalidade associada ao tratamento em três vezes menos mortes”, “o tempo de internamento” e “os consumos clínicos adicionais”. Outros médicos chamados como testemunhas confirmaram estas asserções.
Analisada a informação contabilística da Angiomédica, do Instituto Cardiovascular de Lisboa e os dados bancários da Angiomédica, de José Fernandes e Fernandes e dos seus sócios, o Ministério Público não conseguiu “apurar que a Biosonda tivesse atribuído” àquele médico “qualquer quantia como contrapartida pela decisão de escolha de endopróteses por si fornecidas”. Concluiu ainda que os patrocínios não constituíam um crime, sendo uma “prática legal da indústria ligada à saúde” e que a aquisição dos livros não significava “qualquer pagamento contra uma vantagem obtida”.
“Não se indicia que José Fernandes e Fernandes, no exercício das suas funções, ao validar o pedido de aquisição de endoprótese e ao identificar o tipo de endoprótese a utilizar com indicação do respetivo fornecedor, tenha obtido para si ou para terceiro vantagem não devida, em especial por parte da Biosonda”, concluiu a procuradora do DIAP de Lisboa. Também não ficou suficientemente indiciado que José Fernandes e Fernandes “estivesse a praticar ato contrário aos deveres de diretor do serviço de cirurgia vascular” ou contrário “aos deveres de médico” ou que tenha feito “um mau uso ou um uso desviante dos deveres inerentes às funções de diretor do serviço de cirurgia vascular com o propósito de obter para si ou para terceiro benefício indevido ou de causar prejuízo a outrem, desde logo ao Serviço Nacional de Saúde (SNS)”.
No final, a procuradora sublinha que “não se pode deixar de sublinhar o distanciamento do conselho de administração” do hospital “relativamente ao valor do volume de negócio referente à aquisição de endopróteses, remetendo a decisão da sua utilização/aquisição para os médicos, em especial para o diretor do Serviço de Cirurgia Vascular”: “A situação, a nosso ver, perante o incremento acentuado das aquisições destes dispositivos, definidoras do volume de negócio, aconselharia à tomada de medidas de gestão mais próximas do processo aquisitivo.”
Sobre a atuação do médico, a conclusão do Ministério Público é que “não há indícios suficientes de crime ou de quem foram os seus agentes” para levar o caso a julgamento: “Os elementos probatórios reunidos não revelam qualquer facto de que se possa retirar, com a certeza exigida na presente fase processual, indícios de que José Fernandes e Fernandes no procedimento aquisitivo em causa tenha atuado com o específico intuito de obtenção do resultado definido pelas normas incriminadoras.”