O silêncio caracteriza o Alentejo, assim como o Alentejo caracteriza o silêncio. Ao lado do edifício da Junta de Freguesia de Galveias, concelho de Ponte de Sor, distrito de Portalegre, alguém ousava perturbar este pacto ancestral com um riff de guitarra elétrica e uma bateria galopante. O som trovejava de uma carrinha de caixa aberta, com as portas em igual modo. Logo à frente, uns indivíduos em tronco nu, dentro do parque infantil, com um daqueles tapetes sintéticos que amortece as quedas e não derrete ao sol. A música e a sua coreografia de trabalho nem por sombras estavam em sincronia, embora ambos produzissem timbres metálicos. Não tarda, estavam a chegar os emigrantes, filhos da terra, junto com os filhos e os netos da diáspora, que em agosto rejuvenescem a vila e enchem o parque infantil.
Na vila de Galveias, na margem esquerda da ribeira do Sor, com o seu casario baixo, emaranhado na encosta de uma colina cercada de vastidão, hoje é bem capaz de haver mais casas do que habitantes. “Vende-se” é uma palavra comum nas paredes. O abandono não foi elitista. Estão devolutos os casebres e as casas senhoriais. Só que estas, em vez de “vende-se”, têm a mensagem inscrita em várias camadas de pó, que já petrificou sobre os brasões de família.
Galveias só é Galveias pela sua linhagem aristocrata. Se fosse pela endogenia frutícola, ainda seria Vila Nova do Laranjal. Atualmente, são mais os velhos do que os novos. Por entre os jovens que um dia a guerra colonial levou, os que embarcaram na vaga migratória dos anos 60 e os que, ao longo do tempo, foram tornando maiores as grandes cidades litorais, o metabolismo desertificador nunca foi interrompido.
Há outro dado estatístico, que em Galveias persiste. Sempre houve mais homens do que mulheres, ainda que se tenha mantido incólume no tempo a tendência dos homens morrerem mais depressa. É uma das heranças daqui. A outra, que faz desta freguesia uma das mais ricas da Europa em património, é o legado de uma família sem descendência.
UM CASAMENTO, UM IMPÉRIO
No dia 13 de junho de 1876, os esquissos do futuro de Galveias começaram a desenhar-se. Fundiram-se pela via do matrimónio duas grandes famílias, que haviam de formar uma das maiores casas agrícolas de todo o Alentejo – e, por consequência, do País –, casando filhos menores. Com a suprema autorização papal, Maria Clementina Godinho de Campos deu a mão em casamento a Manuel Marques Ratão. Na Igreja de São Lourenço, padroeiro de Galveias, casou-se o destino desta vila.
Da lógica das coisas, nasceu a Casa Agrícola Marques Ratão. Da lógica da vida, nasceriam cinco filhos, obedecendo à lógica demográfica de Galveias: quatro meninos, uma menina. Nasceram, pela ordem do tempo, João Godinho de Campos, Ana de Jesus Godinho de Campos, Manuel Marques Ratão Júnior, José Godinho de Campos Marques e Mário Godinho de Campos. À sua maneira, todos eles se tornaram filhos insignes de Galveias, uma condição que os seus pais haviam tornado hereditária. Todos lutaram pelo desenvolvimento da vila e dos seus conterrâneos de forma altruísta, deixando obra feita para o usufruto dos cidadãos de Galveias, como eles.
O primogénito, que era um homem talhado para o campo e para lavoura, e o mais novo dos irmãos, um homem do mundo – oficial da Marinha de Guerra e médico, ligado à criação do Posto Hospitalar de Galveias –, morreriam cedo. Dos cinco, foi Ana de Jesus quem teve vida mais longa e a triste sina de ver os pais e três dos seus irmãos descer à terra. Por circunstâncias da vida e de têmpera, foram Ana de Jesus e José Godinho de Campos Marques, os mais apegados ao lugar onde nasceram, embora Manuel Marques Ratão Júnior, o irmão do meio, lhes pedisse meças nesse amor. Dos cinco irmãos, aliás, não se conheceu outro, pois nenhum casou e nenhum deixou descendência. José Godinho de Campos Marques seria o último dos Marques Ratão. A sua derradeira vontade marcaria ad aeternum a vida de Galveias, que se tornou legítima herdeira de uma riqueza incomensurável. A Casa Agrícola Marques Ratão, que se consolidara num império, tem um património que hoje vale muito acima de 50 milhões de euros.
Em 1956, Ana de Jesus Godinho de Campos, José Godinho de Campos Marques e Manuel Marques Ratão Júnior, por influência da irmã, criaram a Fundação Maria Clementina Godinho de Campos, em honra de sua mãe. Ratão Júnior, que faleceu dois anos depois, foi o seu primeiro presidente, sendo D. Manuel Mendes Santos, o então Arcebispo de Évora, o presidente do Conselho de Administração. Após a morte de José Godinho de Campos Marques, que sucedeu o irmão na presidência da fundação, a arquidiocese de Évora seria a sua administradora vitalícia.
Dizem os de Galveias que partilharam quotidiano com os seus beneméritos que a palavra é insuficiente para os definir. Muito antes de ser formalizada a fundação com o nome da matriarca da família, já os Marques Ratão tinham feito muito pelo seu berço. Ana de Jesus sempre foi reconhecida pela sua bondade e pelos seus gestos de filantropia. Em 1951, foi ela a fundadora da Sopa dos Pobres, que roubou da fome mais que uma geração de galveenses. Durante anos, serviu uma média de 70 refeições diárias, a idosos e crianças.
Foi esta a primeira obra de vulto em Galveias. Mais do que a fome que matava, oferecia um retrato fiel do que era o Alentejo de então. Para espanto sucessivo dos galveenses, a Sopa dos Pobres mais não era que um aperitivo nas obras públicas que aí vinham, sob o signo Marques Ratão, que era também o maior assalariador das redondezas. Alguns anos depois, José Godinho de Campos Marques pegou em 500 contos e entregou a empreitada para a construção do mercado coberto da vila, inaugurado em 1953, o ano do milagre da luz elétrica em Galveias, por obra e graça do mesmo patrono.
Em 1954 é inaugurado o Clube Marques Ratão Júnior e, em estreia absoluta naquele reduto de Alentejo, a mais estrutural de todas as obras de qualquer localidade, o posto escolar. O ensino do pensamento em pleno Estado Novo só podia ter duas interpretações: ou os senhores de Galveias tinham perdido o juízo ou a vila se tinha tornado num exemplo. Que se saiba, Galveias em si nunca foi condecorada. Mas a família Marques Ratão repartiu cinco comendas, todas da Ordem de Benemerência, pelos seus três descendentes derradeiros.
Não é possível falar do posto escolar sem falar de um casal de professores, por quem passaram gerações de galveenses, entre as quais um filho da terra, que se tornou pródigo. A professora Arcângela Oliveira lembra-se muito bem do menino Zé Luís. Foi ela quem lhe deu as primeiras lições de português.
O menino é José Luís Peixoto, que na vila já tem nome de rua, que se tornou um escritor universal e o mais famoso dos galveenses (ver entrevista). O seu livro, cujo título é homónimo da sua terra, está guardado como um tesouro no pensamento dos que lá vivem.
SOB O SIGNO DE RATÃO
Em 1955, já tinham sido inaugurados o asilo, o dito Posto Hospitalar Dr. Mário Godinho de Campos, e o chamado Bairro Económico, que consistia em 19 moradias para os que trabalhavam para a Casa Agrícola Marques Ratão. No ano seguinte, foi criada a Fundação Maria Clementina Godinho de Campos, com as valências assistenciais, que ainda hoje tem (lar, posto hospitalar, centro de acamados, centro de dia e apoio domiciliário).
Em 1958, inaugura-se o edifício da Junta de Freguesia de Galveias e morre Manuel Marques Ratão Júnior. Em 1959, foi fundado o Patronato de Raparigas, em regime de externato. Em 1960, com a diferença de um mês, dois acontecimentos ficaram na História de Galveias: a inauguração da Cine-Esplanada de São José, que atraiu à vila nomes grandes da rádio e do cinema, tendo Madalena Iglésias e António Calvário como cabeças de cartaz. Um marco de urbanidade, mas nada que se comparasse à inauguração de rede de abastecimento público de água. Um bem que ainda hoje subsiste em Galveias, praticamente gratuito para a sua população.
Em 1961, ficou acabado o Bairro para Pobres, um conjunto de 24 moradias, destinado aos que em Galveias permaneciam herdeiros dessa condição. No ano seguinte, faleceu Ana de Jesus, ficando José Godinho de Campo Marques como o herdeiro único do legado da família. Em 1966, o eterno presidente da Junta de Freguesia de Galveias, a troco de uma boa maquia em contos, instalou na vila o posto da GNR. Sob a presidência de Campos Marques, foi igualmente criado o refeitório escolar e o lagar, onde ainda hoje a população transforma em azeite a sua azeitona. As ruas de Galveias foram pavimentadas, as igrejas, as capelas e muitas casas foram recuperadas, construíram-se esgotos e vários edifícios públicos, como os correios, jardins e zonas de lazer. O património de Marques Ratão não parava de crescer. E Galveias crescia com ele.
A herança
Todas as obras realizadas entre os anos 50 e 60 devem-se quase na totalidade à família Marques Ratão, mas tinham em comum um benfeitor, que construiu nesta vila a sua utopia, pagando-a sempre em dinheiro, sem meias-conversas, como era seu apanágio. Toda a gente sabia que “o senhor comendador” era uma pessoa simples, que se sentia bem entre o povo, não tinha tiques de novo-rico nem artimanhas de velho-rico. Gostava muito de festas populares, de fogo de artifício e da sua privacidade, que não tolerava a devassa. Que a sua imponência escondia um coração de mel e que o seu aparente trato rude era um disfarce da sua generosidade. Era um homem de trabalho, um humanista, temente a Deus e à Igreja, uma pessoa séria, que vendia caro o sorriso, embora nunca poupasse dinheiro e esforços para dotar Galveias de equipamentos e serviços públicos, que em muitos lugares do País, eram ainda um tema no capítulo da mitologia, com os sonhos rasurados a lápis azul.
Em Galveias, ele dominava o curso da vida. A dado momento da sua, à medida que as mortes dos irmãos o foram deixando só, era o administrador da casa Marques Ratão, presidente da fundação criada pela família, presidente da Junta de Freguesia de Galveias, presidente da assembleia-geral da Casa do Povo, secretário da Santa Casa da Misericórdia, diretor do Clube Manuel Marques Ratão Júnior, diretor da Sopa dos Pobres. E, convém acrescentar, entusiasta e mecenas número um da Sociedade Filarmónica Galveense, à qual atribuiu um subsídio vitalício. Estava em todos os cargos-chave das instituições galveenses por uma simples razão: era ele a razão dessas instituições.
José Godinho de Campos Marques morreu a 12 de junho de 1967, deixando todo o património da família à freguesia de Galveias, sua herdeira universal, em conjunto com a Fundação Maria Clementina Godinho de Campos. Para os herdeiros do último dos Marques Ratão ficaram mais de 6500 hectares de terra produtiva, da cortiça ao cultivo, gado, carros e alfaias agrícolas, e ainda quatro prédios em Lisboa. Um na Avenida da Liberdade, morada de José Godinho de Campos Marques na capital, outro na Visconde Valmor e mais dois na Travessa dos Remolares, ao Cais do Sodré, todos a necessitar de recuperação.
Fernanda Bacalhau, a atual presidente da Junta de Freguesia de Galveias, eleita pela lista da CDU nas eleições intercalares de janeiro passado, pela renúncia de mandato do anterior executivo socialista, admite que encontrou uma “montanha de problemas, que decorrem de incorreções e opções de gestão que terão sido pouco respeitadoras do testamento do seu benemérito”. A Junta de Freguesia é o veículo de gestão do património, mas, diz, “é bom vincar que este pertence à freguesia e não à Junta. As linhas de gestão desse património estão bem claras no testamento. É como se fosse o nosso plano diretor”. A autarca já estava à espera de muitos problemas. Mas confessa que “o volume da realidade era muito maior” do que pensava. “O património edificado está num grau de degradação significativo e muito preocupante, sem que a Junta de Freguesia tenha meios próprios para os resolver. São necessários 30 a 40 milhões de euros para reabilitar todo este património, em Évora, em Portalegre, em Lisboa e em Galveias. E ainda assim não se resolviam todos os problemas.”
De recordar que a Junta de Freguesia de Galveias, assim como a fundação, por via da herança que as une, não têm autorização legal para alienar património. “Este património tem potencial elevadíssimo, é preciso colocá-lo de novo ao serviço dos galveenses.”
Uma das grandes riquezas produtivas da região, a cortiça, só colhe rendimentos de nove em nove anos. “Ao longo do tempo, não se conseguiu equilibrar os ciclos produtivos, de modo a termos rendimentos mais constantes. É essencial devolver a vida aos campos, pois há muitas herdades, património da freguesia, que estão praticamente ao abandono”, acrescenta Fernanda Bacalhau. Os galveenses, a fazer fé nas ditas eleições intercalares, estão pouco crentes no motor da sua herança. Dos 1083 eleitores de Galveias, 49 por cento não votaram.
Nas últimas décadas, nasceu em Galveias um pavilhão polidesportivo, a Casa da Cultura funciona bem, o infantário continua ativo, a freguesia continua a produzir o azeite Marques Ratão, o vinho Marques Ratão, os borregos Marques Ratão – que a Junta vende, com os lucros a reverterem para a freguesia. Mas, os problemas de que fala a sua presidente, tudo absorvem, sem que os legítimos herdeiros dos Marques Ratão vejam isso traduzido na sua vida. A última grande obra pública que nasceu em Galveias foi o complexo de piscinas e parque aquático Oásis Parque, há 10 anos.
A fundação, sob a gestão da arquidiocese de Évora, tem sabido manter e desenvolver o seu legado. Mas as diferentes lideranças da Junta de Freguesia de Galveias foram lentamente votando ao abandono muitas das herdades que lhe pertencem, e aos galveenses. Há muitos campos desertos, sem gente que neles trabalhe. Galveias é hoje uma espécie de latifúndio de si próprio, alternando a gestão socialista com a comunista, exercendo como pode esta herança feudal. A riqueza pode estar na herança de Galveias. Mas a pobreza está-lhe no sangue. Talvez seja por isso que o silêncio caracteriza o Alentejo.
Artigo publicado na VISÃO 1280 de 14 de setembro