Ao segundo dia de interrogatório, a 7 de Fevereiro de 2016, as procuradoras que conduzem o processo “Rota do Atlântico” perguntaram ao empresário e ex-agente de futebolistas José Veiga o que tinha a dizer sobre transferências e depósitos em numerário – num total próximo dos 300 mil euros – saídos de uma conta da Internacional Services Congo (uma das suas muitas empresas) para uma conta em nome de Bernardo André Santos Martins, um rapaz de 23 anos sem atividade declarada. José Veiga não sabia explicar. O juiz Carlos Alexandre adiantou que Bernardo André era filho de José Bernardo Santos Martins, advogado com escritório na Avenida de Berna. José Veiga não se lembrava de alguma vez ter recorrido aos serviços desse advogado, por isso continuava sem saber explicar. Foi neste momento que uma das procuradoras se terá lembrado de frisar uma “estranha coincidência”: o seguro do carro conduzido pelo juiz Rui Rangel estava no nome daquele advogado.
Nesta fase, a investigação já sabia que José Veiga – que apoiara Rui Rangel numa candidatura à presidência do Benfica – tinha tido pelo menos um encontro com o juiz no hotel Ritz, uns meses antes de ser detido. Sabia também, como a VISÃO revelou há umas semanas, que um escrivão do Tribunal da Relação de Lisboa, conhecido por ser próximo de Rangel, tinha transportado papéis para José Veiga, no hotel Intercontinental, no Estoril. Durante o interrogatório, Rogério Alves, advogado de José Veiga, ainda terá frisado que aquela quantia de dinheiro era significativa, mas nem assim Veiga tinha qualquer coisa a esclarecer.
A ponto de o juiz Carlos Alexandre precisar de lembrar que a questão era séria – porque mostraria uma forma hábil de transportar às pinguinhas dinheiro do Congo para Portugal – e sondar Veiga sobre a sua amizade com o juiz-desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa. José Veiga preferiu não chamar-lhe amizade, contando que o conhecera uns quatro anos antes numas eleições para o Benfica.
Mais tarde, porque José Veiga não parava de lembrar que vivia atormentado com um processo fiscal que ainda decorria contra si, o juiz de instrução foi direto à questão: era ou não verdade que Veiga se encontrara com o juiz Rui Rangel para agilizar uma solução para o processo que tinha pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa? José Veiga divagou: confirmou ter tido uma reunião com Rangel no hotel Ritz (nesta altura já sabia que esse encontro estava documentado num relatório de vigilância da PJ que consta do processo), e que tinham primeiro falado sobre o Benfica, porque era anti-Vieira e o juiz Rangel lhe contara que Luís Filipe Vieira lhe prometera um lugar na Assembleia-geral nas eleições futuras do clube mas Veiga avisara-o que poderia ser mera estratégia para deixar adormecer um potencial concorrente e depois deixá-lo cair.
Só depois disso teria aflorado que a sua vida estava estagnada por causa do problema fiscal, que há dois anos estaria parado no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa – e teria pedido ao juiz Rangel se teria possibilidades de “agilizar” e acelerar o resultado, uma vez que eram todos juízes e “amigos de tribunais”. No entanto, não estava confiante, pois acreditava que com Rangel seria só “bla bla bla”.
E aquela era a primeira vez que falava com o juiz Rui Rangel sobre aquele assunto? José Veiga disse que sim, mas nesta altura já o juiz Carlos Alexandre e as procuradoras que conduzem a investigação no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) tinham outros dados em cima da mesa.
É que antes de ouvirem José Veiga, já tinham interrogado outros dois arguidos do processo: a advogada Maria de Jesus Barbosa, que tratava de negócios de Veiga em Portugal, e Paulo Santana Lopes, irmão do ex-primeiro-ministro Pedro Santana Lopes e sócio de Veiga nos negócios do Congo. E a versão de Paulo Santana Lopes, que também tinha estado presente na reunião do hotel Ritz, era outra: o empresário contou que no dia desse encontro, no final de 2015, no hotel de Lisboa, o juiz Rui Rangel teria ido contar o resultado das diligências que já teria levado a cabo junto do juiz que conhecia no Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa; e que tinha já a garantia de que o processo estaria resolvido até ao final do ano.
José Veiga começou por responder que a conversa tinha girado à volta do tema mas cada um o interpretava à sua maneira. E só mais à frente disse que Rangel apenas lhe tinha dito que o resultado estava “prestes a sair” mas que iria ver novamente. Não concretizou mais. E aqui a procuradora Susana Figueiredo terá voltado a intervir para lembrar que não era normal que procuradores e juízes andassem a fazer perguntas sobre o andamento dos processos ou a tentar ter influências nas decisões. E lembrou que Paulo Santana Lopes tinha usado no seu interrogatório a expressão “não há almoços grátis” quando falava do juiz Rangel. Se assim era, o juiz do Tribunal da Relação de Lisboa faria estas “simpatias” a Veiga a troco de quê?, terá perguntado.
José Veiga respondeu assim: a troco do futebol, porque Rui Rangel andava “cego pelo Benfica” e entenderia que Veiga ainda poderia ajudá-lo a financiar uma campanha eleitoral.
Então e as transferências para o filho do advogado que, por sinal, titulava o seguro do carro do juiz desembargador? Não haveria uma ligação entre as duas coisas?, insistia a procudora. José Veiga disse que não fazia a mínima ideia de como aqueles eventos se uniam.
Meses depois destes interrogatórios, o DCIAP remeteu uma certidão para o Supremo Tribunal de Justiça, por aquele tribunal ser o competente para investigar a conduta de um juiz desembargador. O processo está a ser acompanhado por um procurador-geral-adjunto do Supremo Tribunal de Justiça e por duas procuradoras do DCIAP, por decisão da Procuradoria-Geral da República. Pelo meio, a investigação do “Rota do Atlântico” chegara a novos indícios contra o juiz-desembargador, e que a VISÃO revelou: nas buscas ao escritório do advogado que titulava o seguro do carro do juiz Rangel foi encontrado um documento assinado pelo próprio dando conta de que tudo o que estava numa conta bancária em seu nome pertenceria, na verdade, a Rui Rangel. Foram ainda encontrados talões que comprovavam sucessivos depósitos numa conta do juiz; e registos de pedidos de auxílio financeiro, feitos por Rangel ao advogado via email.
Com todos estes dados somados, o Ministério Público julga ter encontrado indícios fortes de que Rui Rangel recebeu milhares de euros de José Veiga de forma encapotada, recorrendo a duas contas bancárias, uma em nome do advogado, outra em nome do filho do advogado. E suspeita que esse dinheiro terá sido pago para que o juiz Rangel conseguisse decisões judiciais favoráveis ao empresário José Veiga.
A VISÃO enviou questões ao juiz desembargador Rui Rangel, mas não obteve respostas.