O tenente-coronel Mário Maia, que esta sexta-feira, 7, será ouvido no DIAP de Lisboa, enquanto diretor da “Prova Zero” do 127.º Curso de Comandos, é um bom exemplo do desentendimento entre a procuradora Cândida Vilar – que dirige a investigação às mortes dos recrutas Hugo Abreu e Dylan da Silva, e aos maus tratos que os outros aspirantes dizem ter sofrido – e a juíza de instrução que acompanha o inquérito, Cláudia Pina. A procuradora prepara-se para indiciar aquele militar por um segundo crime, enquanto a juíza, num despacho de novembro de 2016, o ilibou de quaisquer responsabilidades, considerando que não teve “intervenção relevante nos factos”.
Cândida Vilar, segundo fonte da investigação, deverá agora indiciar o tenente-coronel Mário Maia do crime de insubordinação por desobediência. Isto porque, num depoimento escrito, o general Faria de Menezes, comandante das Forças Terrestres, afirmou ter dado ordens para a suspensão imediata daquela recruta, logo após a morte do primeiro jovem aspirante a Comando, Hugo Abreu, a 4 de setembro do ano passado, na sequência de um “golpe de calor” que sofreu e do estado de desidratação extrema em que se encontrava. Mas no dia seguinte, 5 de setembro, houve treinos, ainda que ligeiros, no Campo de Tiro de Alcohete. Pela indiciação de insubordinação por desobediência, de acordo com o Código de Justiça Militar (CJM), o diretor da “Prova Zero” incorre numa pena até 4 anos de prisão.
No entanto, como aconteceu com todos os 14 arguidos até agora constituídos no processo (nos próximos dias haverá mais), o tenente-coronel Mário Maia já foi anteriormente indiciado do crime de abuso de autoridade por ofensa à integridade física, que o CJM prevê e pune severamente. No seu artigo 93.º, estipula penas de prisão de 8 a 16 anos, se a ação provocar perigo para a vida do subordinado ou se dela resultar a morte.
Código militar ou civil?
Sujeitos a um enorme esforço físico, sob temperaturas a rondar os 40 graus, e com o racionamento de água que lhes foi imposto, mais de duas dezenas de recrutas do 127.º curso deram entrada no posto médico, todos com o mesmo quadro clínico – exaustão, desidratação e rabdiomiólise (destruição das fibras musculares). Hugo Abreu e Dylan da Silva (que faleceu seis dias depois, a 10 de setembro) foram os que pagaram com a vida. É esta a linha de investigação que a procuradora Cândida Vilar segue: trata-se de um crime de “natureza estritamente militar”, cometido com dolo e sob a alçada do CJM. É a Polícia Judiciária Militar, aliás, quem apoia Cândida Vilar nas averiguações no terreno.
Mas em novembro do ano passado, quando promoveu a detenção dos sete arguidos que na altura estavam constituídos no processo, para aplicação de medidas de coação, a procuradora sofreu um revés. A juíza de instrução Cláudia Pina, no despacho que proferiu, remou contra quase todas as alegações de Cândida Vilar – a começar pela tese do “crime estritamente militar”.
Cláudia Pina desvalorizou-a. Não subscreveu a agressão a militares no âmbito da instrução “como um crime militar”. E quando a procuradora avançou que a morte dos dois instruendos, além do mais, lesava “de modo relevante a defesa do Estado”, considerou esse argumento “no mínimo rebuscado”.
A juíza entendeu que era “claramente o objetivo dos arguidos, ainda que algo distorcido em alguns casos, preparar os instruendos para a guerra, para o primeiro embate numa frente de combate”. Pretendiam, acrescentou, “sujeitá-los a ofensas que os mesmos [instruendos] consentiram ao sujeitar-se ao curso e permanecer no mesmo, visando fortalecer a sua resistência física e psicológica”.
Mas admitiu que houve arguidos que “não respeitaram as condições de segurança que estavam previstas no guião da prova, não fornecendo aos instruendos ofendidos água suficiente, como não cuidaram de assegurar que a prova se desenvolvesse em condições de segurança”. Não associou, porém, o diretor do curso, tenente-coronel Mário Maia, à prática de qualquer crime, como atrás se referiu.
A procuradora e a juíza apenas estão de acordo nos indícios atribuídos ao capitão médico Miguel Domingues, responsável pela assistência clínica no curso 127. “As explicações [dadas pelo médico] em interrogatório são claramente insuficientes, estando este apto a obter um socorro atempado aos ofendidos, ainda que no local não tivesse os meios necessários, mas não o fez, desinteressou-se e permitiu pela sua conduta omissiva que o resultado morte se viesse a produzir”, escreveu Cláudia Pina no seu despacho.
Resultado: a juíza de instrução requalificou, segundo o Código Penal civil, os indícios para dois crimes de homicídio por negligência (pena até 3 anos de cadeia) e crimes de ofensa à integridade física grave negligente (pena até 2 anos de prisão).
O certo, porém, é que a procuradora Cândida Vilar continua a trabalhar de acordo com o duro artigo 93.º do Código de Justiça Militar. Quem vai ganhar? Só o tempo o dirá.