Mal chega ao Palácio de Belém, no dia 9 de março de 1986, Mário Soares, então com 61 anos, mostra logo aos funcionários que vem aí uma nova era. Entre as primeiras ordens que dá, percebe-se, de imediato, toda uma forma de estar e de viver do novo inquilino, em contraste total com o seu antecessor, Ramalho Eanes.
Começa logo pela decoração. Manda tirar as cortinas do seu gabinete, para poder ver o Tejo, e reforma os cadeirões severos – onde Eanes se sentava (e tantos outros antes dele) -, preferindo encher o gabinete presidencial de cómodos sofás. Quando era primeiro-ministro e ia a despacho a Belém, Soares chamava aos cadeirões de Ramalho Eanes “bancos de pau”…
O novo presidente quer vincar os seus costados republicanos e vai buscar o cadeirão dos leões, onde se sentavam os presidentes da I República, nele se retratando no quadro de Júlio Pomar. O próprio retrato oficial, onde se vê um Soares sorridente, elevando as mãos, é todo um manifesto do seu modo de estar na política, qualquer que seja o cargo, em contraste com os quadros sisudos dos seus antecessores em Belém.
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O retrato oficial de Presidente da República pela mão de Júlio Pomar
O brio republicano vai mais além e Soares tem puderes em habitar ou pernoitar no Palácio de Belém. Tal como os primeiros Presidentes da República que, para marcar a diferença em relação à monarquia, sentiam não ter o direito de ocupar um edifício do Estado para uso pessoal. Manuel de Arriaga viveu em Belém, mas pagava 100 escudos de renda. Excluindo as sestas, Soares nunca dorme no palácio. Fez lá apenas uma madrugada, na noite em que começou a guerra do Golfo, em 1991, para ir acompanhando os acontecimentos.
“O dr. Soares dizia sempre que os lugares não o fazem a ele; ele é que faz os lugares. Logo no início, fizemos uma exposição de escultura nos jardins, abrindo o palácio às pessoas [com obras de José Cutileiro, Lagoa Henriques, Pedro Croft, etc.]”, refere José Manuel dos Santos, antigo assessor cultural de Mário Soares e de Jorge Sampaio.
Foi a primeira de muitas. Há bailados, concertos… Maria Barroso recupera o antigo ateliê de pintura do rei D. Carlos para lá promover encontros culturais. Os eventos sucedem-se, assim como os acontecimentos sociais. Mário Soares adora receber e, a certa altura, ir jantar ao Palácio de Belém passa a contar socialmente. Chovem cunhas para se estar entre os convidados.
À mesa com toda a gente
Mário Soares adora conviver e, como nota José Manuel dos Santos, “não havia ninguém de relevo, que passasse por Portugal, que não fosse convidado para o palácio”. Karl Popper, Vargas Llosa, Umberto Eco, Kirk Douglas… Muito recordada é a visita da atriz Lauren Bacall, em 1993, com Herman José a subir a rampa do Pátio dos Bichos num vistoso Rolls Royce.
Mas nenhuma receção foi tão disputada quanto a dos barões Thyssen-Bornemisza. É que a revista espanhola Hola! iria fazer a cobertura social e toda a gente se acotovelava para aparecer. As revistas portuguesas gabaram muito o vestido modelo Scherrer e as joias da baronesa Carmen, a ex-miss que conquistou o magnata que colecionava arte.
Noutra altura, estava o País rendido à telenovela Roque Santeiro quando aparecem em Belém os atores Regina Duarte e Lima Duarte. A conversa ao jantar não tinha fim e ameaçava prolongar-se madrugada dentro, quando Beatriz Costa lhe põe um ponto final, exclamando: “Já dizia uma marquesa: ‘Eu, se fosse visita, ia-me embora’”. E toda a gente ri, saindo da mesa.
Com Mário Soares, o Palácio de Belém começa a servir cozido à portuguesa às refeições, tendo-se comprado as apropriadas caçarolas de barro. O Presidente adora tudo o que é comida portuguesa, torcendo logo o nariz a qualquer tentativa de o alimentarem com nouvelle cousine. Mesmo nos grandes banquetes de Estado, oferecidos às altas dignidades estrangeiras no Palácio da Ajuda.
O seu estilo é tão informal, que, uma altura, deixa boquiaberto um responsável político norte-americano, a quem Soares convidara para almoçar. Chegados ao restaurante, o empregado diz, muito respeitosamente, que não tem mesa disponível, nem para o Presidente. Mário Soares aceita o facto com toda a naturalidade, uma vez que não tinha feito reserva. E muito menos mandara os “batedores” à frente, por razões de segurança, para fecharem o restaurante, como certamente fariam os americanos.
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O último dia no Palácio de Belém, como Presidente, em março de 1996
Rui Ochôa
A política e a gastronomia combinam bem e passam a andar de mãos dadas em Belém. Por exemplo, enquanto Ramalho Eanes reunia todos os conselheiros da sua Casa Civil numa sala grande, com projeção de slides e estratégias políticas desenhadas em papel cenário, Soares aborrece-se com reuniões e papéis, e prefere juntar os colaboradores à mesa.
Tem um núcleo duro de colaboradores (embora cultive uma relação informal com toda a Casa Civil, sendo que todos têm acesso ao Presidente e ele próprio gosta de irromper pelos gabinetes dos consultores adentro), que leva sempre para almoçar, no palácio ou nos restaurantes das redondezas, seguindo-se um passeio para fazer a digestão, tanto no Jardim Botânico Tropical, como no coração de Lisboa, descendo a Avenida da Liberdade. Os guarda-costas também vão, mas Soares mantém-os à distância, para não inibir os transeuntes de se aproximarem.
Cidadão do mundo
O poder gosta de ter os seus símbolos e Mário Soares, querendo deixar marca como Presidente próximo do povo, inaugura aquilo que chama de “presidências abertas”. As de Soares eram bastante diferentes das dos seus sucessores – tanto Jorge Sampaio como Cavaco Silva, como agora Marcelo Rebelo de Sousa, continuaram estas incursões pelo País real, mas através de visitas a instituições ou a regiões.
Com Soares não era assim. As “presidências abertas” significavam que a sede da Presidência da República se mudava temporariamente para a região escolhida. “Chegavam a durar semanas e levávamos tudo, da baixela à guarda de honra. Até o primeiro-ministro tinha de se deslocar para lá, quando ia a despacho”, explica José Manuel dos Santos.
Depois temos as viagens ao exterior. Mário Soares ficou conhecido como o Presidente que mais viajou (até agora). Faz parte do seu estilo de “homem do mundo”, com mergulhos nas diferentes culturas. Vimo-lo de turbante, na Índia, em cima de um elefante, ou de calções, nas Seichelles, sentado numa tartaruga. Esta foi a visita mais polémica, sob acusações de “fazer turismo” à custa do erário público.
“Se houve alguém que projetou o País com as viagens que fez foi Mário Soares. Era conhecido em todo o lado. E foi o primeiro a levar delegações comerciais e culturais nas visitas de Estado”, referiu o embaixador Nunes Barata, seu chefe de gabinete no primeiro mandato, numa entrevista à VISÃO em janeiro de 2016.
José Manuel dos Santos reforça essa ideia. “Soares estava para Portugal como Lech Walesa estava para a Polónia, ou seja, já era muito conhecido antes de ser Presidente da República. Por isso, toda a gente o queria receber e todas as grandes universidades do mundo lhe deram o doutoramento”, remata.
Numa dessas cerimónias, Soares engana-se e, em vez de levar o traje típico da universidade que o homenageava, veste o da Confraria do Vinho do Porto, conta o antigo assessor, divertido. É mais uma história mundana, entre as muitas que Soares deixa à posteridade.