Socialistas, comunistas, de direita, de esquerda. Amigos mais próximos, amigos menos próximos. Homens e mulheres de combates iguais e de combates diferentes. Todos, sem exceção, passaram hoje pelo Mosteiro dos Jerónimos para prestar uma última homenagem a Mário Soares.
Recordaram o papel fundamental do antigo Presidente na luta contra o fascismo, destacaram-lhe a “coragem”, a “frontalidade”, a firmeza na defesa da Liberdade.
Em câmara ardente na Sala dos Azulejos, nos Jerónimos, o corpo de Mário Soares passou primeiro por vários pontos de Lisboa, sempre acompanhado pelos aplausos de populares que nas ruas lhe foram prestando homenagem. Primeiro às portas da sua casa no Campo Grande, seguindo depois para a Câmara de Lisboa, onde os dois netos emocionados entregaram as insígnias daquele que foi Presidente da República por duas vezes e também primeiro-ministro.
Já em armão militar (uma espécie de charrete puxada a cavalo), o caixão de Mário Soares, com a bandeira portuguesa por cima, fez o percurso que separa os Paços do Concelho do Mosteiro dos Jerónimos. Foi ali, com o Tejo no cenário, que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, acompanhado do Presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e da ministra da Presidência, Maria Manuel Leitão Marques, presenciou a entrada da urna nos Jerónimos.
Milhares de pessoas foram passando ao longo do dia pelo Mosteiro. Mesmo sem contabilização feita à entrada, a fila de populares não abrandou. Muitos traziam flores – cravos vermelhos, símbolo da liberdade, foram as mais escolhidas. Ao redor dos claustros, onde amanhã decorrerá a cerimónia evocativa que antecederá o funeral, dezenas de coroas de flores embelezam o cenário.
Os populares foram destacando o respeito, a gratidão e agradecendo aquele a quem dizem dever a liberdade. A luta de Soares contra o fascismo foi o ponto mais recordado da sua vida, mas também houve muitos que não quiseram esquecer um outro feito: “o ter-nos livrado do comunismo”, como dizia à VISÃO, Joaquim Inácio, 78 anos, que veio do Barreiro de propósito para prestar uma última homenagem ao “camarada Soares”.
Também os comunistas não quiseram ficar de fora desta homenagem. Jerónimo de Sousa foi, aliás, o primeiro líder partidário a estar nos Jerónimos para homenagear Soares. Chegou acompanhado de João Oliveira e António Filipe e fez questão de recordar o antigo Presidente da República como “um combatente contra a ditadura fascista”, que defendeu presos políticos “num tempo em que era difícil fazê-lo”. Mesmo as divergências “profundas” que afastaram o PCP de Mário Soares, Jerónimo lembrou que este é um momento de “perda” e não quis alongar-se no tema. Disse, no entanto, que “a história não se inventa, mas existirão sempre interpretações diferentes”, até porque “muitas vezes quem escreve a história são os vencedores, mas a história não se apaga”. E se muitos recordam Soares como quem alguém que impediu a instalação de uma ditadura comunista em Portugal, Jerónimo tem uma posição diferente: “essa não é a nossa visão”.
Do lado do Bloco de Esquerda, Catarina Martins preferiu recordar Soares “pelas vezes que lutámos juntos contra a Guerra do Iraque ou contra a troika”.
Quem “sempre” esteve “do mesmo lado” que Soares foi o seu amigo e fundador do PS Edmundo Pedro. Visivelmente debilitado, o histórico socialista lembrou as palavras do amigo que em tempos lhe disse que sem ele “não tínhamos vencido o PREC, o que é um exagero”. Também Ramalho Eanes, antigo Presidente da República, recordou o papel de Soares na luta contra o fascismo. “Foi um coautor relevante do estabelecimento do Estado de providência que deu aos portugueses não a igualdade, que infelizmente não existe, mas a igualdade que torna todos os homens dignos e que lhes garante segurança nas situações mais difíceis que a vida muitas vezes nos traz”. Eanes não quis lembrar os momentos em que estiveram em lados opostos, mas antes o facto de terem estado “senão juntos, pelo menos muito próximos”, nas “grandes questões”.
Numa tarde em que foram muitos os deputados, políticos, senadores históricos e figuras de relevo da sociedade portuguesa que estiveram nos Jerónimos para a última homenagem a Soares, Passos Coelho marcou pela diferença. O líder do PSD recusou entrar pela zona destinada às figuras políticas e esperou mais de 20 minutos na fila de populares que se estendia à frente do mosteiro. Quis estar ali não “apenas como presidente do PSD e ex-governante, mas também como cidadão” e deixar uma “palavra amiga, solidária” aos filhos João Soares e Isabel Soares. Lembrou o ano de 1984, quando conheceu o “Dr. Soares”, então primeiro-ministro, era ele “dirigente de uma organização de juventude partidária”.
Quem também aguardou na fila foi José Sócrates. O ex-primeiro-ministro lembrou o “ato de coragem” de Soares ao visita-lo na prisão, quando esteve preso em Évora. “Nunca quis agradar a todos, nunca fez uma carreira política com base no cálculo, fez com base naquilo que acreditava. Opor-se por vezes à corrente e lutar contra o ponto de vista da corrente é o que faz a singularidade, é isso que faz um vitorioso: não ter medo de perder”. Sócrates despediu-se de Soares dizendo que guarda para sempre “um amor fraternal” com o fundador do PS.
O corpo de Mário Soares estará em câmara ardente até às 11horas de amanhã. Passará depois para os claustros do Mosteiro dos Jerónimos, onde será celebrado uma sessão evocativa e feitos alguns discursos. O funeral está marcado para as 15h30, no Cemitério do Alto dos Prazeres. A urna passará antes disso pelo Palácio de Belém, pela Assembleia da República e pelo Largo do Rato.