Perante uma Europa enredada em crises (financeira, migratória, de segurança), Jean Claude Juncker carregou o seu segundo discurso sobre o estado da União com termos de guerra. Camou-lhe “A caminho de uma Europa melhor – uma Europa que protege, dá meios de agir e defende” e fala de paz, porque “a Europa é sinónimo de paz”, mas para logo depois regressar ao belicismo: “o modo de vida europeu deve ser protegido. É preciso lembrar porque é que as nações da UE decidiram colaborar entre si. Nós, europeus, opomo-nos totalmente à pena de morte.” Considera que a Europa se pode orgulhar de ser “uma potência suave, mas aqui não chega. A Europa deve afirmar-se mais. Ela já não se pode dar ao luxo de depender de países individuais. O estabelecimento de recursos militares comuns justificar-se-ia plenamente”.
Mas nem só de guerra falou o presidente da Comissão Europeia. Tentando projetar a União para os próximos 12 meses, Juncker falou da necessidade de apressar o processo do Brexit, da incompatibilidade entre uma Europa social e a evasão fiscal, propos duplicar o plano de investimentos em duração e montante.
O discurso pode ser lido ou visto – a sua análise, deixámo-la para Carlos Gaspar e Bernardo Pires de Lima.
CARLOS GASPAR
Diretor do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa
“É interessante ver que os únicos temas fortes na intervenção do presidente a Comsisão Europeia são a Segurança e a Defesa. Designadamente, que o Corpo de Fronteiras Europeias (o FRONTEX) está acordado e previsivelmente vai ser anunciado em Bratislava [na cimeira que juntará, sexta feira, os chefes de Estado e de Governo da União Europeia].
Jean-Claude Juncker repete as palavras de François Hollande sobre a cooperação estruturada permanente – também estava no discurso de Hollande aos embaixadores. A cooperação estruturada permanente está inscrita nos Tratados (no Tratado de Lisboa). A sua execução não exige nenhuma reforma dos tratados, já que está inscrita no Tratado de Lisboa.
Provavelmente serão estes os pontos fortes da Cimeira de Bratislava.
Um último ponto: Junker também falou do regime de monitorização das entradas e saídas da União Europeia – uma espécie de registo de entrada, com informação sobre o motivo da visita – à americana…”
BERNARDO PIRES DE LIMA
Investigador do IPRI
“Numa análise geral, o discurso foi igual ao que Juncker representa no actual momento crítico europeu: sem chama, sem rasgo, desgastado pelo tempo. Parto do princípio, e tenho-o afirmado várias vezes, que a UE perdeu uma boa oportunidade de revitalizar a Comissão quando escolheu Juncker para suceder a Barroso. Não se pode esperar milagres de alguém que esteve na origem do mau desenho da moeda única, se burocratizou nos corredores do poder de Bruxelas, e esteve dez anos à frente de um governo envolto em suspeitas de favorecimento fiscal numa altura de crise económica.
Numa análise mais particular ao discurso, diria que ele é mais bem escrito do que lido por Juncker (que só lhe acrescenta cinzentismo e enfado), embora se disperse excessivamente por medidas avulsas sem um foco estratégico capaz de marcar a agenda da Comissão.
É positivo que tenha colocado o momento da UE como sendo de “crise existencial” e que aponte para os próximos “12 meses” como decisivos para o seu futuro, porque é disto que se trata. De qualquer forma, faltaram temas fundamentais a uma Comissão que tem de ser a guardiã da coesão entre todos os Estados-membros mas que está eclipsada em muitas áreas: onde estiveram as soluções para a zona euro; onde ficou a ameaça russa e a solidariedade com a Ucrânia; onde parou a posição da Comissão sobre as negociações do acordo de livre-comércio com os EUA; onde esteve o crescimento do autoritarismo na Turquia e na Rússia como parte do arco vizinho ao espaço europeu democrático e liberal; onde esteve uma posição construtiva e de gestão de danos em relação ao brexit; onde ficou o mercado único energético.
E relançar a ideia da defesa europeia conjunta num quartel-general permanente é responder ao Brexit com um projecto que estava a ser trabalhado entre Paris e Berlim como forma de reforçar o centro continental em detrimento dos laços à NATO. Aliás, este ponto foi um dos motivos de divisão transatlântica durante a crise anterior à invasão do Iraque em 2003. Não precisamos de novas cisões no Ocidente, pelo contrário. E atira poeira para os olhos dos europeus: por um lado, há muito mais missões de segurança e defesa da UE em curso do que da NATO, o que não há é vontades nacionais à altura dos objetivos dessas missões; por outro, o que o momento europeu pós-Brexit pede não é mais defesa, mas mais economia, coesão política e crença nas instituições comunitárias. Juncker representa o falhanço dessa trilogia.”