Chegou pontualmente ao encontro no Chiado para uma entrevista que, a seu pedido, foi curta. Maria Lúcia Amaral, 59 anos, é professora catedrática da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa e juíza do Tribunal Constitucional há 9 anos. Mas esta conversa tem uma outra razão: em maio do ano passado foi convidada pela Fundação Francisco Manuel dos Santos para comissariar o encontro Que Democracia?. Agendado para 7 de outubro, no Teatro São Luiz, em Lisboa, o encontro trará a Lisboa Ian Shapiro, da Universidade de Yale, Jean Cohen, professora na universidade de Columbia, e Mario Vargas Llosa, escritor, prémio Nobel da Literatura (2010) e antigo candidato às presidenciais peruanas. O programa não de fica por aqui, incluindo um total de 14 oradores nacionais e estrangeiros, performances, música, e um ciclo de cinema dedicado ao tema da democracia. Para constitucionalista, a necessidade de discutir a Democracia resume-se em poucas palavras: “Está a sofrer mutações”. Como membro do Tribunal Constitucional, Maria Lúcia Amaral ficou conhecida pela sua forte oposição à opinião maioritária dos seus colegas nos acórdãos sobre cortes nas pensões e cortes nos salários da função pública. A juíza foi contra os pareceres que impediram o governo de Passo Coelho de aplicar mais cortes, alegando que o tribunal se estava a imiscuir em temas do poder legislativo e criticando a falta de previsibilidade das decisões do Constitucional, que deviam servir de “bússola orientadora”.
Como surgiu o convite para preparar este encontro?
Surgiu da Fundação Francisco Manuel dos Santos, há mais de ano.
Propuseram-lhe preparar um encontro sobre a democracia ou a democracia foi um tema sugerido por si?
A Fundação disse-me que tinha um grande encontro sobre a Democracia e perguntaram-se se queria ser a comissária nacional.
Então herdou o tema?
Sim, não foi uma proposta minha mas aceitei-o com todo o gosto.
Porque é importante haver um encontro para discutir a Democracia? Não é um dado adquirido?
Quando aceitei, pesou não sou só o tema mas o facto de ter sido convidada pela Fundação. A Fundação tem tido, em pouco tempo, uma presença notória nos debates sobre a realidade portuguesa. Eu encaro a escolha do tema como natural. A democracia está perfeitamente enraizada na nossa cultura quotidiana, política, histórica, disso estou convicta. É saudável e mostra que ela está enraizada o facto de as pessoas não andarem a perder tempo a tentar perceber o que ela quer dizer. É uma das coisas mais saudáveis que a democracia pluralista tem: dá espaço às pessoas para viverem as suas vidas. O oposto, um tipo de regime e de vida coletiva, de que eu não gostaria de participar, seria aquele em que as pessoas estariam inevitavelmente preocupadas, ocupadas com os assuntos políticos. Não teriam tempo para educar os filhos, para se dedicarem às suas profissões…
Para se encontrarem com um grupo de amigos e discutir política.
Sim, para isso. É das provas mais evidentes de que a democracia está enraizada, o facto de nos podermos cansar da atividade política, dos políticos.
Então para quê discuti-la?
Vou dar-lhe uma imagem à primeira vista caricata. Isto é como o trabalho doméstico de uma dona de casa. Quando tudo funciona impecavelmente, ninguém quer saber das disfunções. As coisas andam. Podemos viver as nossas vidas livremente.
Então, para usar a sua imagem, acha que se varreu o pó para debaixo do tapete da democracia?
Não, não acho. É algo mais profundo do que isso. Há neste momento um paradoxo: a democracia é um modo de vida enraizado em muitos sítios, tem uma aceitação universal como nunca teve antes, a maior parte dos países diz-se democrático, tem uma expansão global como nunca teve antes. Mas basta olhar em volta e percebemos que o nosso mundo é tudo menos pacificado. A democracia à qual os nossos contemporâneos reconhecem validade está a sofrer mutações. Está a enfrentar desafios. Está a requerer novas soluções. É altura de perceber que a tal organização de casa que nos permite viver as nossas vidas precisa de ser refletida. Não podemos pensar que ela não nos interessa. Não! Ela interessa-nos.
Quais são, então, os problemas da democracia?
Eu resumi-los-ia a três. O primeiro é a democracia e a globalização. Está a ocorrer uma grande transformação sob os nossos olhos, de natureza tecnológica, como aconteceu com a revolução industrial do século XVIII. A máquina a vapor fez com que a vida milenar no campo começasse a acabar. A evolução tecnológica no final dos anos 80 do século passado vai também alterar em muito a vida e os hábitos das pessoas. Nunca as pessoas viveram tão próximas e tão distantes. Sabemos o que se está a passar no Japão mas isso não significa que tenhamos conhecimento suficiente para compreender o japonês enquanto concidadão do mundo. A tecnologia dá-nos uma imagem da proximidade que é simultaneamente real e fictícia. A democracia tem tido um âmbito de aplicação que é a nação. Como pode ser mantida numa escala mais vasta? Como pode ser compatibilizada com esta mudança profunda?
E os outros, quais são?
A democracia e a representação. As pessoas podem viver a sua vida calmamente, sem se estarem sempre a preocupar com os assuntos públicos, o que seria muito cansativo… Escolhem representantes que atuam por sua conta e interesse e não é preciso estarmos muito atentos para perceber que este modelo, válido desde o século XVIII, também está em mutação. Basta pensar nas formas de comunicação, na nova forma de convocar manifestações.
O terceiro grande problema é a justiça social. Todas estas alterações, tecnológicas e económicas provocaram novas fraturas sociais evidentes. Permito-me evocar um pensador antigo, Aristóteles, que na Política diz que o fundamento dos governos moderados, que não são tirânicos, são as classes médias, aquelas pessoas que não são extremamente ricas nem extremamente pobres. Os extremamente ricos não colaboram porque têm de preservar a sua riqueza. Os extremamente pobres não tenderão a colaborar porque não têm nada a perder. Um regime moderado como a democracia não pode sustentar-se em grandes fraturas sociais.
Para esses três problemas existem soluções. Não é terreno virgem. Para a globalização, contamos com a ONU e com os encontros do G7. Também há modos de participação direta e deliberativa nas democracias. E, por último, temos o Estado Social como instrumento de justiça social. São estas soluções do século XX que precisam de ser revistas?
Todos esses elementos tiveram a sua expressão máxima na Europa, quando, depois de 1945, se teve de a reconstruir. Foram pensados e gloriosamente vividos na segunda metade do século XX. Se essas soluções se mantêm válidas, a mudança de circunstâncias que lhe referi, os ventos da história, estão a pôr em causa a sua suficiência. Não quer dizer que não sejam boas mas agora, nas primeiras décadas do século, parecem ser insuficientes e por isso importa refletir sobre elas.
A União Europeia é democrática?
É uma questão muito complexa.
Consegue uma resposta simples para esta questão complexa?
É democrática de forma indireta. É democrática na exata medida em que as instâncias de decisão da União são ocupadas por titulares de órgãos escolhidos democraticamente por cada um dos povos dos Estados da união.
É uma democracia já muito rarefeita?
Em certo grau, muito rarefeita. Torna muito difícil o prestar de contas, a accountability. Cada governo presta contas perante o seu próprio eleitorado mas não há um povo europeu ao qual se possa prestar contas. A Europa é um esforço conjugado de vários povos e de várias nações. A questão que se coloca é saber se é construível, e até que ponto, uma Europa com um demos próprio, um povo próprio perante o qual os decisores possam diretamente prestar contas. Esse é o grande desafio. A Europa é democrática? Bom, a democracia não tem a intensidade que tem em cada Estado que dela faz parte.
Reforçar o papel do Parlamento Europeu permitiria ultrapassar esse gap democrático?
O papel do Parlamento Europeu tem sido crescentemente reforçado. Não sei se a forma de resolver a questão passa por replicar para o plano europeu soluções estaduais. Talvez a solução esteja a montante. Imaginemos que existe uma opinião pública europeia, capaz de ultrapassar os interesses estaduais. Ainda é do domínio das utopias, mas é isso que talvez possa ser construído gradualmente. Por exemplo, no domínio académico, deram-se passos importantes com programas como o Erasmus. O Erasmus teve consequências incalculáveis para os pressupostos de uma democracia europeia.
Fez o Erasmus mais pela democracia europeia do que o Parlamento Europeu?
Não direi isso. Mas fez muito.
A participação eleitoral em Portugal tem diminuído. E a opinião dos portugueses sobre os políticos e as instituições também é muito negativa. São sinais de que se vive numa casa arrumada ou são sinais de desconforto em relação à democracia?
Os índices de abstenção só podem ser reveladores de desinteresse e de desconforto. Também podia ser reveladora de uma confiança imensa nas instituições democráticas. Mas não vamos ter ilusões. A nossa casa não está bem. No caso português, o elevado índice de abstenção é um sintoma de desconfiança, de grande deceção nas instituições políticas e nos seus ocupantes.
Com razão?
Sim, mas não imputo isso facilmente à debilidade das pessoas. Tenho uma leitura que procura raízes mais profundas. Desde o início deste milénio, as instituições políticas democráticas começaram a ser presa de uma espécie de sentimento interno de impotência. Como se as políticas não fossem capazes de fazer aquilo que tem de ser feito em nome dos seus cidadãos. É este sintoma de impotência que se vai apoderando dos decisores, vivido com razão ou sem ela. Em parte com razão, porque passou a haver fatores exógenos que constrangem a capacidade de decisão dos políticos. Daí que as pessoas se sintam desiludidas. No século XX, o Estado dominava completamente a tecnologia, os correios, a navegação aérea, os transportes, a circulação do dinheiro. Hoje nada disto é dominado pelo Estado.
Então a classe política tem limitações novas que não lhes permite satisfazer os seus eleitores?
Sim, exatamente isso.
Então a desconfiança e o desinteresse resultam da falta de poder dos políticos? Não é por causa da corrupção, da gestão da coisa pública em função de interesses privados?
Uma coisa não exclui a outra. A emergência de poderes de facto, que nem sabemos muito bem onde estão, redundou numa disjunção entre o poder de direito e poder de facto. A ocupação desses cargos começa a ser menos atraente, começa a perder o sentido e também a perder o valor. A partir daí tudo vale. Olhamos para o caso português e vemos, nestas primeiras duas décadas, um declínio do grau de exigência e de ética no desempenho de cargos públicos e políticos. A partir do momento em que os antigos poderes de direito começam a ser menos potentes são as instituições que começam a perder sentido. Eticamente desorientamo-nos. É por isso que é necessário discutir a democracia.
A nossa Constituição é democrática?
Não tenho a menor dúvida.
É a Constituição de que precisamos para os desafios que elencou?
A nossa Constituição tem uma característica que não nos facilita a vida. É a mais longa de todas as constituições de todos os Estados membros de União Europeia. Mais longa do que a nossa, só a brasileira. É uma constituição muito detalhada, regulamentar e prolixa que aborda matérias que não são matérias constitucionais e que não têm de lá estar. Eu tenho para isto uma explicação. Uma constituição não é uma obra perfeita, acabada, de técnicos que se reúnam… Uma constituição é um produto da história e a de 1976 é assim porque, quando foi escrita, a sociedade portuguesa estava profundamente dividida em relação ao modelo a seguir. É dos livros: quanto maior o dissenso, mais longo tem de ser o texto. A natureza prolixa da constituição foi o preço que pagámos pela paz. É por isso que eu acho que temos de viver com ela sensatamente. Sensatamente significa não ter uma interpretação regulamentar para um texto que tem esta natureza prolixa. Mas só a poderemos dispensar quando tivermos a certeza que teremos em sua substituição outro elemento tão fundador da paz quanto foi esta constituição de 1976.
Pode-se então fazer um mau uso da Constituição?
Pode, sobretudo de uma constituição demasiado extensa.
E tem sido feito?
Sou ainda membro do Tribunal Constitucional português e sempre que penso que se faz mau uso manifesto-o.
Conheço a sua opinião, expressa nos acórdãos do TC. Aliás, a sua posição crítica levou a imprensa a apodá-la de “juíza radical”. É uma imagem correta do seu trabalho como juíza?
Espero que não.
É ou não?
Se é assim que me vejo? De modo algum. A radicalidade é uma forma muito simples de colocar a questão. A minha divergência no Tribunal é explicável até pela minha formação. Tenho uma formação científica e académica muito diversa dos outros membros. Olho as coisas de modo diverso. Penso que há dificuldades na interpretação em qualquer texto. Eu, por exemplo, estou aqui cheia de medo que haja dificuldades de interpretação das minhas palavras nesta entrevista. O Direito é quotidianamente interpretação de textos escritos. E a mais difícil e exigente interpretação é a da Constituição. O que houve, e nada tem a ver com radicalidade, foram divergências em relação aos critérios de interpretação que o Tribunal usou maioritariamente.