“Acho que já desistiu de ser Presidente da República.” As palavras do antigo dirigente do Bloco de Esquerda, Francisco Louçã, à VISÃO, em 2003, sobre Marcelo Rebelo de Sousa, faziam então, todo o sentido. Marcelo tinha atingido o estrelato, como líder de audiências, na TVI, alcançando uma média de 2 milhões de espectadores em cada domingo. O sucesso como comentador dava-lhe mais poder do que a política ativa. Mais, Louçã seguia a linha de raciocínio de Manuel Alegre, ouvido no âmbito da mesma reportagem sobre o professor-comentador, e que era esta: “Ele, agora, tem um certo distanciamento em relação ao exercício do Poder.” Ou seja, Marcelo começava a afastar-se da militância na sua área política e dificilmente seria candidato da direita, em 2006. Logo, dificilmente seria candidato. O que estes seus atentos observadores e adversários políticos não imaginariam (ainda) é que ele já estava a escrever o guião de uma candidatura solitária e concebida à sua maneira. Decorridos doze anos e alguns meses, e depois desta sua recente “anticampanha”, todos os manuais de marketing político devem ser revistos. Ou, se pensarmos nos 95% de abstenção nos círculos da emigração, talvez possam ser substituídos por uma… TVI internacional.
A reportagem da VISÃO, em novembro de 2003, tema principal de capa, tinha, no título de chamada, a pergunta do momento: “O que é que Marcelo tem?” Eleito, 12 anos depois, aos 67 de idade, Presidente da República, “o que é queMarcelo tem?” é uma pergunta com igual atualidade. Para responder a ela, voltamos a ouvir a maior parte dos depoentes de há 12 anos (alguns preferiram não falar). O que disseram então? Se Louçã falhava no seu vaticínio, José Miguel Júdice seria, em 2003, premonitório: “Eu sentir-me-ia honrado em viver num país que o tivesse como Presidente da República.” E agora, está contente? Júdice é taxativo: “Marcelo tem inteligência, capacidade de comunicação com todos os públicos, sentido de humor, empatia fácil, otimismo, moderação e habilidade política. E autoridade em matéria constitucional, experiência política e relações fáceis com políticos de todas as áreas ideológicas. Tudo isso faz-me ter esperança no futuro.”
Tantos elogios obrigam-nos a regressar a um mais cético Francisco Louçã, que garantia em 2003: “Ele é assumidamente tendencioso, senão, não teria graça nenhuma.” Hoje, com Marcelo a fazer as malas para Belém, conclui: “Em 2003Marcelo desistiu, em 2005 esperou por Cavaco, em 2015 não esperou por ninguém. Aboliu o sismógrafo e tornou-se uma promessa de política de centro, porque é assim que se ganham eleições presidenciais pelo menos por agora. Fez tudo bem, ou seja, ninguém sabe o que ele quer e já ninguém explica isto aos domingos.”
O QUE DIZ O SUCESSOR
Manuel Alegre, que foi apoiante de Maria de Belém nestas presidenciais, e ele próprio ex-candidato, dizia sobre Marcelo, à VISÃO, em 2003: “Às vezes, um elogio dele é pior do que uma ferroada de lacrau.” Hoje, leva-o mais a sério: “Conseguiu, muitas vezes, ser autónomo em relação ao poder exercido pelos seus, numa relativa autonomia bem doseada e sábia. É um homem muito inteligente e um grande comunicador de televisão, mesmo com aqueles tiques de andar à esquerda e à direita e ter estacionado ao centro. E tem alguma eficácia, nesse aparente distanciamento em relação à sua própria família política.”
Marques Mendes, que o substituiu como “pregador de domingo” (mas na SIC), com o mesmo registo aparentemente descomprometido, ou, pelo menos, não sectário, dizia então que Marcelo tinha “o condão de fazer as pessoas entenderem as questões, os problemas e as mensagens, por mais difíceis ou sofisticadas que elas sejam.” Passados todos estes anos, acrescenta ao julgamento de então o “carisma” e a “independência, um atributo que os portugueses cada vez valorizam mais na ação política”. E traça um estilo para Belém: “Marcelo passou a ter agora uma legitimidade própria muito reforçada, porque teve uma vitória que é apenas dele próprio, não apropriável por ninguém, no quadro da candidatura presidencial vencedora menos partidária de sempre.”
O ‘FRAQUINHO’ DE ANA GOMES
Os testemunhos sucedem-se. Telmo Correia, deputado do CDS, metia algum veneno, em 2003, dizendo que Marcelo tinha influência, sobretudo, no PS. Estava-se longe da “recomendação” conjunta de PSD e CDS do voto no professor. Hoje, Telmo assevera que “se há 12 anos tinha sobretudo influência na política e na oposição, agora conquistou uma relação direta com os portugueses.” E brinca com a questão que a VISÃO recupera: “O que é que o Marcelo tem? A pergunta lembra a letra de Carmen Miranda e a resposta clássica da Baiana era: graça como ninguém!”
As opiniões têm traços comuns, venha de onde vier o comentário. Jorge Coelho também foi ouvido pela VISÃO em 2003: “Tem uma influência tremenda! Mas põe as suas estratégias à frente dos factos.” É caso para se dizer que o histórico do PS bem o topou: pelos vistos, a estratégia funcionou e hoje Marcelo é, putativamente, o “senhor Presidente”: “Marcelo vai ser o próximo PR e é nessa qualidade que o passarei a tratar.
Acabou-se o comentador Marcelo e começou o Presidente Marcelo.” Resta saber se o Presidente “leva” ou não “leva”, caso “se meta com o PS”…
Coelho não foi o único socialista que se pronunciou, no ano em que Marcelo atingiu (e para ficar) o pico das audiências. A agora eurodeputada Ana Gomes confessava: “Tenho um fraquinho por ele, mesmo sabendo que é, por vezes, intelectualmente desonesto.” E o que diz agora? “Confirmo. Mantenho tudo, incluindo o fraquinho por ele. Não cometo a injúria de dizer que ele é o 24 de abril. Ele é um construtor do poder dos media e, nesse sentido, da liberdade.” A socialista confia: “Não creio que tê-lo em Belém vá ser dramático para o País, poderá até ser benéfico para equilibrar as sensibilidades. Pode ser um PR interessante nos equilíbrios internos. E reconheço-lhe toda a capacidade de nos representar externamente. É um traquinas por natureza, mas que vai ter de se moderar na Presidência. Tem toda a inteligência para isso. Mas, às vezes, esses traços de personalidade são difíceis de controlar, portanto vamos ter de ficar atentos.”
Já o antigo ministro do PSD, Nuno Morais Sarmento, que nos confessava, na reportagem de 2003, que gostava de Marcelo mesmo quando ele, nos seus comentários, “fazia maldades intencionais”, remata: “Na altura falámos dos seus comentários, hoje falamos dele enquanto Presidente da República. E não me lembro de outro PR que tenha sido tão livre como este. Marcelo não está preso a nada. Tem legitimidade individual porque construiu uma relação direta com o País. Não tem, de facto, as limitações de uma candidatura partidária. Afirmou-se contra a opinião expressa pelo partido numa determinada ocasião. Isso não aconteceu com mais ninguém.” Mas adverte: “Os portugueses continuarão a olhar para ele como o Marcelo comentador. Vamos ter um PR que vai falar muito mais, é essa a sua característica.”
AQUELA AULA DE EQUITAÇÃO…
Fenómeno comunicacional, na linha dos grandes comunicadores do pequeno ecrã, Vitorino Nemésio, António Victorino de d’Almeida, Sousa Veloso, ele aparece, sobretudo, como uma espécie de José Hermano Saraiva da política a mesma arte para prender o espetador, o mesmo rigor discutível no tratamento dos assuntos… Uma praticante de hipismo, e sua aluna em Direito, descreve a alusão, numa das suas preleções, a um concurso de equitação: “Não disse uma acertada, mas foi um gosto ouvi-lo. Quase me convencia…”
Esse alegado “encanto hipnótico” atingiu gerações de alunos seus, que enchiam as suas aulas, mesmo que, hoje, não sejam seus eleitores. Mas também teve sempre os seus críticos. E, alguns, de peso. Em novembro de 2003, Belmiro de Azevedo afiançava-nos: “Raramente vejo os comentários na TVI, porque é tempo perdido, salvo para quem gostar de triplas, estilo ‘tem três respostas todas rigorosamente certas para um só conjunto de premissas'”. E Francisco Van Zeller, então presidente da CIP, acrescentava: “As pessoas, quando o ouvem, ficam convencidas de que ele tem razão. Só depois, confrontadas com outros elementos, é que entram em dúvida.” Aos empresários supracitados deve-se dar o desconto: enquanto presidente do PSD, Marcelo enfrentou os lóbis dos negócios e lançou uma cruzada solitária contra a promiscuidade entre poder político e poder económico, tornando-se o ódio de estimação de alguns patrões da indústria. Esse historial contribuiu para que lhe fizessem a cama, no partido. Por estas e por outras (como veremos, pelo que aconteceu durante o Governo de Santana Lopes), talvez não tenha colado completamente a ideia, veiculada pelos candidatos da esquerda às últimas presidenciais, de que ele era o candidato da direita, de Passos & Portas. E ainda hoje Francisco Van Zeller carrega o cenho: desafiado pela VISÃO para confirmar ou corrigir o seu depoimento de 2003, dispara: “Prefiro não voltar a estes comentários. Tiveram a sua época. Quanto a ser ouvido para a sua peça, peço-lhe desculpa mas também não estou interessado.” Belmiro também se escusou a falar.
Independentemente destas guerras, e paralelamente à credibilidade entretanto granjeada junto do cidadão comum, as elites, mais exigentes, apontaram-lhe sempre a duplicidade, as constantes mudanças de opinião, o comentário à medida e tudo resumido, num documento célebre em que a atual direção do PSD se pronunciava sobre um eventual candidato presidencial, o estilo “catavento político”. Já o sociólogo Boaventura de Sousa Santos dizia que concordava bastante com Marcelo, “sobretudo quando fala de assuntos que desconheço…”. No debate com Sampaio da Nóvoa, confrontado por ter dito coisas contraditórias sobre determinado assunto, a defesa de Marcelo foi cândida: “Mas disse! E o senhor, onde estava?”
DEPOIS DA MISSA, EM QUELUZ…
Todos os domingos era a mesma coisa: depois da missa das sete, em Queluz, uma curta viagem em direção aos estúdios da TVI. Gravata quase sempre em tons de azul, escolhida por Rita Amaral Cabral, com quem tem uma relação de anos. Em estúdio, o relógio em cima da mesa, para controlar os tempos. Uma pilha de livros no outro canto. Para trás, durante a semana, vários telefonemas para o jornalista interlocutor, muitos a desoras, para combinar os temas, trocar impressões, dar a tática. Todos aprenderam as regras: Júlio Magalhães, João Maia Abreu, José Carlos Castro, Ana Sofia Vinhas, Judite de Sousa, José Alberto de Carvalho os jornalistas que com ele contracenaram, ao longo destes anos, no ecrã, em direto. Com os parceiros da RTP Ana Sousa Dias, Maria Flor Pedroso não fora diferente.
As cartas dos telespetadores, os telefonemas de políticos, empresários, banqueiros, desportistas, professores, estudantes, donas de casa, a cunha para a recomendação de um livro, o sms de reação, a quente a algum comentário…
Marcelo ainda guarda a carta, já amarelecida pelos anos, de uma telespectadora, onde ela lhe diz que, graças a ele, o filho passou do biberão à papa, muito mais facilmente, embevecido, entretido a olhar para o televisor. Para a próxima, este bebé já vota…
CONFLITO COM SANTANA
Mas tudo tem um custo. Em outubro de 2004, Marcelo Rebelo de Sousa saía da TVI, numa jogada pouco limpa, e pouco explicada, na sequência de pressões do Governo de Pedro Santana Lopes e do ministro Rui Gomes da Silva, uma das vítimas favoritas de Marcelo, na sua prédica semanal. Visto retrospetivamente, talvez Santana lhe tenha feito um favor. Mesmo que o eleitorado não se lembre bem do episódio, fica no subconsciente coletivo essa prova de “isenção”, característica tão reivindicada, pelo candidato, na última campanha eleitoral: da única vez que conseguiram calar a sua voz, foi por obra e graça de um governo do seu partido…
E Marcelo bem soube capitalizar o seu papel de arauto da liberdade, encenando, nessa altura, uma ida ao Palácio de Belém, depois de um pedido de audiência ao então Presidente Jorge Sampaio, para se queixar do atentado à liberdade de expressão. E para trazer à agenda política a alegada promiscuidade entre patrões da comunicação social e o poder político, uma altura em que se preparava a renovação das licenças de emissão.
Durante uns tempos, foi pregar para outra freguesia, no canal estatal. A RTP teve mesmo necessidade de garantir o necessário contraditório, contratando António Vitorino, do PS, para o repique, num comentário à segunda-feira. Mais tarde, António Vitorino sairia e, sob esse pretexto, o canal do Estado mostrava, também, a porta de saída a Marcelo. Vivia-se o consulado de José Sócrates no Governo e Marcelo era de novo afastado, agora pelo poder socialista, embora sem ondas e suavemente. A TVI esperava o filho pródigo.
ABRUNHOSA, TUDO O QUE TE DEI
Por esta altura, Marcelo já firmara o seu estatuto de convidado semanal para o jantar de domingo, em casa de muitos portugueses. E até trazia o farnel: um leitão da Bairrada (que escondia debaixo da sua cadeira em estúdio…) para oferecer, em direto, a Júlio Magalhães, chocolates para Judite de Sousa. Era comentador e animador de serviço. Um dia levantou-se e encaminhou-se para o backstage onde o esperava Pedro Abrunhosa, já sentado ao piano, para tocar um tema do seu álbum mais recente. Abrunhosa, que também foi ouvido pela VISÃO, em 2003, destacava então: “É um grande comunicador. ‘Flirta’ com as câmaras, é extremamente telegénico.” E hoje, o que tem o músico a acrescentar? “Claro que não se ganha uma eleição destas só a ‘flirtar’ com as câmaras, tem que haver também uma grande capacidade política.” O autor de Tudo o que te dou, que é insuspeito de simpatias pela direita, reconhece: “Em termos de notoriedade, Marcelo não é muito diferente do Tony Carreira, ou de mim próprio: é uma espécie de popstar. Mas não vi no discurso de vitória (e ele teve 16 anos para o preparar….) um sentido de esperança e futuro, o carisma humano que lhe reconheço, até porque me considero amigo dele. Mas foi muito melhor, e dirigido a todos os portugueses, do que o péssimo discurso de Cavaco há cinco anos…”
O mote de Abrunhosa, que nos dá a ideia da popstar, remete-nos para as últimas semanas de Marcelo, em que foi muito atacado pelo facto de não precisar de fazer campanha. “Não gasta dinheiro porque não precisa!”, acusavam os seus adversários. “Teve uma exposição de 15 anos em horário nobre!”, bramavam outros. “Com as calças do meu pai sou eu um homem!”, coloria Jerónimo de Sousa. E era verdade. Ele teve a vantagem de ser o comentador mais famoso e mais ouvido, com quase duas dezenas de anos de exposição, em horário nobre, canal aberto, e sem vacilações, praticamente sem conhecer férias ou intervindo, em direto, e de forma profissional, do estrangeiro. Está bem, teve essa vantagem. Mas de quem é o mérito?…
Um facto é reconhecido, agora, por muitos dos que o combateram nas eleições e que Manuel Alegre sintetiza, com fair play: “As diferentes forças de esquerda cometeram o grande erro de o compararem ao Cavaco. Marcelo tem uma personalidade muito diferente.”
Com efeito, nunca vamos ouvir da boca de Marcelo Rebelo de Sousa frases como aquela com que Cavaco Silva enfrentou uma repórter televisiva, que o confrontava com um caso do seu passado: “Eu era um mísero professor, minha senhora!”
* com Inês Rapazote, Pedro Dias de Almeida e Sónia Sapage