Onze horas da noite, 29 de dezembro. Há luzes de Natal. No largo do Chafariz, junto à Sé, Miguel Albuquerque e os seus apoiantes festejam a vitória com abraços e brindes de cerveja. O homem que um dia foi “delfim” acabara de conquistar a cadeira do senhor da Madeira, o senhor governo, o senhor PPD/PSD, ao longo de quatro décadas.
A essa mesma hora, na Rua de Santa Maria, lado oposto da cidade, Alberto João Jardim e a mulher Ângela saem de um restaurante conhecido na zona antiga do Funchal, mantendo conversa de circunstância na esquina por entre amigos de longa data. Um jantar de colegas do antigo 7.º ano do liceu Jaime Moniz, inícios da década de 60, reuniu-os a horas mortas. À mesa recordaram histórias antigas.
“Ninguém falou de política, nem do sucessor Miguel Albuquerque. Jardim estava bem-disposto, simpático, divertido, igual a si próprio, tal como o conhecemos quando éramos jovens estudantes. Contou anedotas e fartámo-nos de rir”, diz quem com ele partilhou mesa.
Uma noite para esquecer as mágoas? Talvez. Jardim não admite a palavra derrota. Não convive bem com a perda de poder. Não perdoa Miguel Albuquerque porque teve a ousadia de confrontá-lo. De o desafiar. Sempre se disse que Jardim preferia ver a Madeira nas mãos de um partido da oposição do que assistir ao programa de um Albuquerque cantando vitória.
O início de tudo
Durante 40 anos, a República deu luz verde para Jardim gerir a ínsula como quis e entendeu. Tendo a noção exata do funcionamento da psicologia madeirense, ele que vinha da “Madeira Velha”, a tal que passou a combater porque as circunstâncias o exigiam. Usou o descontentamento calado dos madeirenses esquecidos pela República, herdados dos tempos de Salazar e Caetano, espartilhados por um regime de colónia dos senhores da terra, uma divisão entre senhorios e caseiros, pela arrogância das elites funchalenses divididas por castas que exploravam a pobreza extrema e o analfabetismo gritante. O isolamento insular onde tudo acontecia tarde de mais, o atraso cultural e político e as condições miseráveis que o arquipélago vivia, curvado perante os muitos poderes de alguns e a ausência de uma massa crítica. Essa tinha deixado a ilha. Rumo a Lisboa ou países estrangeiros passando a ser maltratada – era o “reviralho”, segundo Jardim.
Foi neste cenário que Jardim, apoiado pela Igreja, em 1974, foi levado ao colo para o cargo de diretor do Jornal da Madeira, órgão então detido exclusivamente pela Diocese do Funchal, com a missão de combater o “avanço do comunismo”. Nessa altura, a FLAMA, movimento separatista, estava na rua colocando bombas de gelamonite. Jardim deixou que todos pensassem que fizera parte dessa organização, servindo-se dessa ameaça ou bluff ao longo de décadas. Lisboa acreditou. Mas Jardim não integrou qualquer organigrama operacional ou político da FLAMA. Muitos dos “flamistas” passaram a ser fiéis seguidores do jardinismo quando este afastou os verdadeiros fundadores do PPD e se tornou líder em 1974, aos 31 anos.
Jardim sabe o que quer. E tem um discurso. Em 1976 ganha as eleições regionais e faz-se deputado, líder do grupo parlamentar. Aliás, é o primeiro a apresentar a proposta para as comemorações do aniversário do 25 de Abril, em 1977, antecipando-se à esquerda. No ano seguinte, consegue desembaraçar-se do primeiro presidente do governo regional, Ornelas Camacho, e sobe ao poder conquistando maiorias absolutas consecutivas. O seu poder surge com a prática discursiva e populista, a execução de projetos numa vertigem de obras públicas intermitente que arrastou multidões e votos.
O amigo e o bando
Alberto João acompanhou todos os governos constitucionais da Republica, de Mário Soares a Pedro Passos Coelho, e todos os Chefes de Estado, de Ramalho Eanes a Cavaco Silva. A criação de um inimigo externo para manter a chama, o contencioso das autonomias faz-se, sobretudo, por questões de dinheiro. Era preciso fazer obra. Jardim fazia.
Passaram os ministros das Finanças Ernâni Lopes, Miguel Cadilhe, Eduardo Catroga e Sousa Franco que, na qualidade de presidente do Tribunal de Contas, disse que “não punha as mãos no fogo” pelas Contas da Madeira, até chegar Pina Moura, um “excelente ministro para a Madeira”, segundo Jardim, e a Manuela Ferreira Leite, que impôs o endividamento zero às regiões autónomas. Veio, depois, Teixeira dos Santos e a nova Lei de Finanças Regionais do governo Sócrates. Jardim chamava, então, “bando” ao Executivo socialista, e acabaria por demitir-se e provocar eleições antecipadas, em 2007. No entanto, após o temporal de 20 de fevereiro de 2010, Jardim afeiçoou-se ao ex-primeiro-ministro e entenderam-se. A Lei de Meios, para colmatar os prejuízos, foi a salvação.
A dívida e a ‘troika’
Mas eis que chega a troika. Vítor Gaspar, depois do apuramento da situação feita pela Inspeção-Geral de Finanças, em conferência de imprensa anuncia que a dívida da Madeira atingiu 6,3 mil milhões de euros, constatando-se uma dívida oculta de 1,1 mil milhões, cuja investigação foi arquivada este ano pela Procuradoria-Geral da República, estando em fase de recurso por iniciativa do PND, assistente no processo. Inicialmente, Jardim contestou os números, mas logo a seguir assinou um Plano de Resgate.
A história da dívida remonta a 1981 com o recurso ao crédito bancário com aval do Estado. Uma imposição do então ministro das Finanças do Governo da Aliança Democrática. Este crédito substituía o montante das verbas transferidas pelo OE. Até 1985 esses financiamentos atingiram 23 milhões de contos (115 milhões de euros). Em 1986, Cavaco Silva, primeiro-ministro, avança com um Programa de Reequilíbrio Financeiro. Em 1989, surge o Programa de Recuperação da Região Autónoma da Madeira que vigora até finais de 1997, ou seja, praticamente até à 1.ª Lei de Finanças Regionais do Governo de António Guterres, que começou a regularizar as transferências.
A 2.ª Lei data de 2007 e que acaba por ser esbatida com a Lei de Meios, de 2010 (custos do temporal).
Alberto João Jardim deixa responsabilidades financeiras na ordem dos 7,5 mil milhões de euros, o que representa um custo inaudito para o orçamento regional. Em 2014, só os encargos com o serviço da dívida atingiram 400 milhões de euros, num orçamento de 1,5 mil milhões de euros.
Após as eleições regionais de 2011 e a vitória de Jardim, Passos Coelho cumprimentou “o povo da Madeira”, dizendo a todos que “o grande esforço de ajustamento terá de ser assegurado pelos próprios madeirenses (…)”, apelando ao esforço do governo de Jardim para “resolver uma situação de desequilíbrio muito forte que aconteceu (…).
O ciclo chegou ao fim. Na próxima segunda-feira, dia 12, Jardim deverá apresentar a demissão de presidente do Governo Regional da Madeira ao representante da República, juiz Irineu Barreto. A partir desse momento, Cavaco Silva tem a palavra.
Quase 5 mil inaugurações
Ao comemorar 38 anos de Autonomia, o Governo Regional, presidido por Alberto João Jardim, fez uma exposição itinerante com os números dos investimentos e das obras realizadas durante os vários mandatos. Foram realizadas 4 800 inaugurações, entre 1978 e 2014, entre elas a ampliação do aeroporto e nova gare em 2000 e uma rede de túneis e pontes por toda a ilha. Entre as estradas, destaque-se a via rápida entre a Ribeira Brava e o Caniçal, com 44 quilómetros, e 8 vias expresso com 82 quilómetros. Foram criados 413 arruamentos municipais, 60 estradas (140 km) e 261 estradas agrícolas (200 km).
No mesmo período, a Região duplicou o número de alojamentos familiares clássicos, tendo agora 129 600 casas, sendo que, destas, 14 800 são de habitação social, contrastando com as 148 existentes no início da autonomia regional. Foram construídos 51 centros de saúde em 54 freguesias e 200 novas escolas. A Madeira dispõe, ainda, de 39 piscinas, sete recintos de futebol (com 33 relvados, no total), 239 polidesportivos, 119 salas para prática desportiva e 25 campos de ténis. O Executivo apoiou, ainda, a construção de 15 novas igrejas.