Já ninguém consegue dar, com rigor, pormenores sobre a ONG para a qual o primeiro-ministro trabalhou pro bono, segundo o próprio, entre 1997 e 1999 (apenas sendo reembolsado por despesas de representação). Registos consultados pela VISÃO, nomeadamente os que foram publicados no Diário da República de 7 de fevereiro de 2000, confirmam transferências de subsídios do Fundo Social Europeu para o número de pessoa coletiva correspondente ao Centro Português para a Cooperação (CPPC), mas nada se sabe sobre a forma como foram aplicados.
Luís Brito, ex-diretor da Tecnoforma, disse ao Observador que o Centro teve 600 mil contos para gastar em três anos, mas Fernando Madeira, outro ex-diretor da Tecnoforma, negou os números, considerando-os “absurdos”. Os poucos projetos que foram desenvolvidos não tiveram resultados à vista desarmada. A atividade do CPPC era tão pouco intensa que o primeiro-ministro se esqueceu de referir que era seu presidente na declaração de interesses entregue no Parlamento, nos anos vários em que foi deputado, entre 1991 e 1999.
Houve, porém, alguém que ficou marcado pela atividade de Passos Coelho no Centro Português para a Cooperação. Chamemos–lhe “Vasco”, já que foi o nome escolhido pelo anónimo que fez a denúncia que pôs o PSD à beira de um ataque de nervos. Durante uma semana, poucos sabiam o que ia na cabeça do primeiro-ministro e como ele se iria defender das acusações de que foi alvo. Apenas um núcleo duro garantia que o chefe do Governo permanecia calmo e tencionava esperar para, no momento certo, tudo esclarecer em “sede própria”: o Parlamento.
Atividade pouco documentada
No último debate quinzenal, a 26 de setembro, nem tudo ficou esclarecido. Pedro Passos Coelho foi taxativo a dizer que “nunca” enquanto foi deputado recebeu “qualquer valor” da empresa Tecnoforma. “Mas gostaria de acrescentar, porque muitas vezes as questões de natureza formal ou semântica podem não responder cabalmente a todas as questões, é verdade que fui presidente do conselho de fundadores de uma organização não governamental que era participada por dois senhores que eram administradores dessa empresa, e integravam a direção da ONG”, acrescentou.
Sobre pagamentos, ou reembolsos, disse ainda que “durante todo esse período” pode “ter apresentado despesas de representação, de almoços, de deslocações”, como os casos referentes a viagens a Bruxelas, a Cabo Verde ou ao Porto, mas que isso não é, nem nunca foi, incompatível com as funções de deputado em regime de exclusividade.
Ficou por dizer quais eram as suas funções concretas no CPPC e qual o valor total dos reembolsos sob a forma de despesas de representação. Passos fez referência às diligências realizadas para encontrar um parceiro que quisesse instalar uma universidade em Cabo Verde, facto que terá justificado várias viagens a esse arquipélago, assim como ao Porto, e nada mais.
A VISÃO tentou contactar algumas das pessoas que passaram pelo CPPC, nomeadamente uma antiga funcionária do centro, para tentar obter informações sobre o seu funcionamento e as suas rotinas, mas apenas conseguiu acrescentar às informações já recolhidas o nome de um projeto que envolveu outro país africano: o Programa para Reabilitação e Promoção Ativa de Emprego em Angola.
Um pormenor no currículo
Na verdade, o CPPC é, como muitas ONGs eram nos anos 90, uma espécie de buraco negro, sem grande controlo. E, no currículo do primeiro-ministro, é um pequeno ponto esquecido, que nunca mereceu qualquer referência, nem sequer na biografia escrita pela jornalista Felícia Cabrita.
Recorde-se que Passos entrou no mercado de trabalho pela porta da Escola Secundária de Vila Pouca de Aguiar, onde deu aulas de Matemática. Ainda nos anos 80, mas já envolvido na JSD, foi convidado para assessor de Couto dos Santos na secretaria de Estado da Juventude, no primeiro Governo de Cavaco. Demitiu-se pouco depois de ser nomeado e acabou por ter de ir trabalhar numa empresa do ramo imobiliário na zona da Baixa de Lisboa. Também foi colaborador e relações públicas na empresa Quimibro, que tinha como sócio, supostamente, um primo seu.
Sobre esses tempos, Passos Coelho disse à sua biógrafa Felícia Cabrita que se recorda do salário magro e de pedir dinheiro a familiares, por vezes, para se sustentar a si e à família. Tinha 23 anos. Só aos 25 seria líder da Jota. E deputado. Entra em 1991 e sai em 1999, já se sabe. Foi este o período que suscitou dúvidas sobre se o mandato teria, ou não, sido exercido em exclusividade.
O universo Fomentinvest
No seu currículo consta também que entre 1994 e 1999 foi colunista regular e remunerado na secção política dos jornais Público, Independente e Expresso e colaborador-convidado da Antena 1, funções que, segundo parecer da AR, são compatíveis com o regime de exclusividade aplicado aos deputados.
Em 1996, com Marcelo Rebelo de Sousa na liderança do PSD e Marques Mendes na da bancada laranja, Passos torna-se vice-presidente do grupo parlamentar e recebe um extra de 15% no seu salário mensal (é um ano depois que funda o Centro Português para a Cooperação, com Marques Mendes, Ângelo Correia e Vasco Rato, entre outros).
Ainda em 1997, candidata-se à Câmara da Amadora, mas perde, tal como já perdera duas corridas à distrital de Lisboa. No final da legislatura, em 1999, retira-se da política para estudar e pede subsídio de reintegração. Acaba a licenciatura tardia em 2003 (ano do seu divórcio). Em 2005 entra na Tecnoforma, iniciando a sua carreira de administrador de empresas, que o levará ao universo da Fomentinvest (de Ângelo Correia).
Os anos mais intensos da sua atividade profissional ocorreram precisamente entre 2000 e 2010, até chegar à liderança do PSD. Nesses dez anos foi: administrador não executivo da Ecoambiente, da Tecnidata, da Adtech e da ALL 2 IT; administrador da Tecnoforma; administrador da Fomentinvest SGPS; Fomentinvest CGP; da Fomentinvest Ambiente; da Tejo Ambiente; da Ribtejo; da HLC TEJO; da Lusofuel e da MCO2.
A visita do mensageiro
Nos anos em que desenvolveu a sua atividade profissional, Passos Coelho esteve vagamente afastado da política. Ainda chegou a participar na comissão política de Marques Mendes, quando este foi líder do PSD, mas depressa se desencantou. Formou movimentos e plataformas cívicas que sempre constaram orgulhosamente do seu currículo. Nesses meios, foi conhecendo pessoas novas e fazendo amigos.
Inimigos fê-los, ao que diz agora, depois de chegar ao Governo e desafiar os poderes instalados. Em sua defesa, na sexta-feira, 26, assumiu perante o Conselho Nacional do PSD que tinha sido visitado por um “mensageiro”. A visita terá servido para deixar o aviso de que o seu Governo tem os dias contados por se ter metido com “alguém influente”. Quem o ouviu, ficou na dúvida se estaria a falar de algo concreto ou se estaria a usar uma figura de estilo.
Um ex-governante próximo de Passos, explica à VISÃO que “ele gosta de usar metáforas” e que essa visita não terá sido real. “O que o primeiro-ministro quis dizer é que, com tudo isto, quiseram mandar-lhe uma mensagem. E ele recebeu-a, mas não se vai deixar condicionar”, explica a fonte da VISÃO. Já no Parlamento, Passos havia feito referência ao facto de a sua forma de agir poder causar incómodo a “pessoas com alguma influência”, sem especificar quem.
Mas afinal, quem é que o primeiro-ministro incomodou? Os reformados a quem foram cortadas as pensões? Os professores mal colocados? Os donos de restaurantes que viram o IVA sobre os seus produtos aumentado? Os desempregados que ficaram sem subsídio? Os trabalhadores que suportaram a taxa extraordinária no IRS? Os funcionários públicos que tiveram vários cortes salariais? Os gestores do GES, a quem Passos recusou dar a mão na sequência do caso BES/GES? Na verdade, muitos podiam ser “o mensageiro”. Mas, conforme se percebeu pela parca informação existente sobre o CPPC, poucos podiam ser “o Vasco”.