A liberdade apareceu logo ali, na discussão. De um lado, os entusiastas, muitos. Do outro, quem não se revisse na iniciativa. Entre os dois, quem decidira aproveitar o feriado para ir dar uma volta. A liberdade foi ficando e acabámos por decidir cantar, mas não enquanto coro. Quem se quisesse juntar à corrente, cantaria com gosto. Quem quisesse ficar de fora, não levaria falta. E o coro manter-se-ia, intacto, liberto de credo e de ligações político-partidárias.
Partiríamos do jardim do Príncipe Real e seguiríamos para o Largo do Carmo, onde desembocariam muitos outros rios. Pela meia noite e 20, como há 40 anos, daríamos todos as boas-vindas ao 25 de abril cantando “Grândola Vila Morena”.
Fomos-nos juntando no quiosque, sem nos apercebermos da benesse que era podermos faze-lo. Havia movimento. Carros, grupos que iam passando. Umas pandeiretas, confetis. E, sem hora marcada, sem repertório definido, sem ter de pedir licença a ninguém, começámos a cantar.
Cantámos uma, outra e talvez uma terceira. Começámos com o Hallo Jango e o resto seguiu sem se pensar muito. E assim nos pusemos a caminho do Carmo. Do outro lado do jardim, no outro quiosque, outro ajuntamento, com bandeiras multicolores. Lá no meio, José Falcão, do SOS Racismo e do Bloco de Esquerda. Nós estávamos ali noutra onda. Exercíamos, orgulhosos, a nossa liberdade. A de nos podermos juntar. De podermos cantar. E a que respiramos no dia-a-dia, todos os dias de há 40 anos para cá, sem sequer nos darmos conta.
Parámos junto à Rua do Século, outra vez mais à frente e de novo no Jardim S. Pedro de Alcântara. Cruzámo-nos com um grupo que seguia, em sentido contrário, com forte escolta policial. Não deviam ser mais do que 30. Mas envergavam faixas com o símbolo dos anarquistas. Nós, com as crianças devíamos ser mais de 40. Parámos junto à Misericórdia, passámos pela cervejaria Trindade e parámos às portas do Largo do Carmo.
Havia movimento. Portugueses e estrangeiros, gente de todas as idades. Muitas máquinas fotográficas à solta, sem censura. Muitos rios foram dar ao Carmo, mas o Carmo não transbordou. Nós, cada um, cantámos de tudo um pouco: o Azulão, o vosso galo comadre, o Siyahamba, Água de beber, Viva la música, o Gobo so pare e até o Mourn for thy servant, do John Blow, para declarar a morte do antigo regime. Depois, irrompeu a grande Grândola!
A noite estava fresca, mas o ambiente era quente, sem faíscas nem sinais de confrontos, como se chegou a temer. A liberdade saiu à rua. Mas é preciso não esquecer que a liberdade é como a saúde: só lhe damos o devido valor quando nos falta.
Vim para casa com duas filhas cansadas e com a voz a doer de tanto cantar Abril. Sempre!