O adágio quanto ao que nasce torto cola-se na perfeição a este caso: a compra por Portugal de dois submarinos, por um total final de 1 001 milhões de euros, juros incluídos. O projeto nasceu tudo menos direito e sobre ele ainda corre muita tinta: há dois casos na Justiça (um dos quais já em fase de julgamento) e assistiu-se à entrada abruta de um hotel de luxo na lista de contrapartidas, agitando as águas políticas. E há ainda a turbulência num estaleiro naval do Estado, em vias de privatização, que poderá conhecer, agora, um novo sobressalto com notícias vindas de Itália, onde o nome de um dos concorrentes à sua compra é referido numa investigação judicial da Procuradoria napolitana.
Mas já lá vamos. Para contextualizar a história, recuemos, primeiro, a abril de 2004, quando o Estado português assinou os contratos com o German Submarine Consortium (GSC) com vista ao fornecimento de dois submersíveis e às respetivas contrapartidas. A manutenção da capacidade submarina pela Marinha é tida como um desígnio nacional e a compra dos submarinos foi “vendida” à opinião pública como geradora de um vento benfazejo para a economia. É que, como contrapartida para a compra daquele armamento, os alemães comprometiam-se a realizar em Portugal 39 projetos no valor de 1 200,43 milhões de euros, com um impacto equivalente a 60% do investimento na emblemática Autoeuropa. As encomendas que daí resultariam para a indústria naval portuguesa salvariam os já moribundos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC).
Passaram, entretanto, oito anos e oito meses sobre a assinatura dos contratos e a realidade é esta: de 39 projetos prometidos, efetivou-se metade, e, dessa metade, sete estão presentemente em tribunal, por causa de um esquema de alegada burla contra o Estado; os 19 que ficaram por concretizar, como veremos, diminuíram para dois, em outubro, na sequência da renegociação das contrapartidas.
Agilizar processos
Quanto aos Estaleiros, depois de uma longa e penosa agonia, em grande parte derivada do incumprimento das contrapartidas, o atual Governo avançou, já em novembro, para a privatização, tida como a solução para aquela empresa pública, integrada na Empordef (a holding nacional da Defesa). Em cima da mesa, há duas propostas – a dos brasileiros da Rio Nave e a dos russos da River Sea Industrial, ambas com promessas de viabilidade para os estaleiros. Uma decisão está por dias.
Mas eis que chegam de Itália notícias suscetíveis de introduzir ruído nesse processo. Em jornais como o La Reppublica e o Corriere della Sera apareceram, no final de outubro, textos em que o presidente da construtora naval brasileira, Mauro Campos, é referido no âmbito de uma investigação do Ministério Público de Nápoles. Trata-se de um caso de alegadas luvas pagas por industriais italianos no estrangeiro e ao qual estará ligada a tentativa do colosso estatal transalpino Finmeccanica de vender 11 navios militares ao Brasil e em que surge também o nome de um antigo ministro da Defesa brasileiro, Nelson Jobim.
Mauro Campos, engenheiro naval, de 73 anos, antigo deputado do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), é mencionado num interrogatório dos magistrados napolitanos Vicente Piscitelli e John Henry Woodcock a Giuseppe Bono, ex-diretor-geral da Finmeccanica. Dada a natureza dos seus casos e o calibre das suas detenções, Woodcock tem granjeado, em Nápoles, uma aura idêntica à do ficcionado inspetor Cattani, da série televisiva O Polvo.
Interrogado, a 26 de setembro passado, Giuseppe Bono afirmou que, a dada altura das conversações de 2009 entre os representantes dos governos italiano de Silvio Berlusconi e brasileiro de Lula da Silva, lhe terá sido apresentado “um certo Mauro Campos”, de um estaleiro que fornecia navios à petrolífera estatal brasileira Petrobras.
“Foi-me dito que, para agilizar o desenvolvimento das negociações, seria necessária uma presença estável no Brasil e que poderíamos assegurá-la, comprando a Campos 50% do estaleiro”, declarou, de acordo com a imprensa italiana. Bono especificou mesmo o preço daquela entrada no capital dos estaleiros: 70 milhões de euros.
Bono comentou não saber a quem se destinava a verba, “mas tratando-se de uma soma desproporcionada, intui que podia ser um ‘retorno’ para a política italiana e/ou brasileira”.
Contactado pela VISÃO, Mauro Campos admitiu ter-se encontrado com Bono, no âmbito das conversações que nunca chegaram a converter-se num negócio e em que a Rio Nave foi avaliada quanto aos requisitos para construir navios de patrulha de 1 800 toneladas. “Estive com o presidente dos Estaleiros italianos [Bono] em várias reuniões”, afirmou. “Mas o assunto nunca evoluiu.” Quanto ao depoimento do gestor da Finmeccanica em Nápoles, Mauro Campos diz: “Ele faz especulações, pelas quais só ele poderá responder.”
Até ao momento, saliente-se, o antigo deputado da Constituinte brasileira não foi contactado, formal ou informalmente, para prestar esclarecimentos às autoridades italianas. A preocupação do engenheiro naval vai, neste momento, para o concurso de privatização que o Governo português ficou de decidir até ao final do ano. “O que é agora”, afirma.
Promessas
Em Viana do Castelo a apreensão é grande. Tanto os brasileiros como os russos avançaram para este concurso, com ideias, propostas e promessas. Prometem manter os 630 trabalhadores, prometem modernizar a empresa e prometem arranjar contratos para os estaleiros. Mas de promessas está Viana cheia.
Os contratos dos submarinos, assinados a 21 de abril, constituíam, disse o então ministro da Defesa, Paulo Portas, “uma oportunidade para a Economia Portuguesa, uma oportunidade para um setor estratégico (…). Para os nossos Estaleiros, para quem neles trabalha, concebe, imagina, para todos os seus operários, para todos os seus quadros”.
A verdade é que Portas, ao colocar a sua assinatura nos documentos, usando a caneta de prata com aparo de ouro (e o tinteiro também argênteo) que a guarnição do submersível Espadarte ofereceu, em 1913, ao seu comandante para assinar a receção do primeiro submarino português, estava a aceitar como já cumpridas promessas de pré-contrapartidas, que incluíam navios mas que ainda nem tinham passado do papel. Projetos num valor de 145 milhões de euros, cuja fatia de leão, 99 milhões de euros, se destinavam aos ENVC e que só anos depois, quando foram terminados se concluiu que apresentavam um Valor Acrescentado Nacional (VAN) inferior ao mínimo de 50% exigido pelo Estado português para que pudessem ser contabilizados como contrapartida.
O mesmo aconteceu com uma encomenda posterior da Ferrostaal aos ENVC: dez navios, num valor de 307,4 milhões de euros. Mas nenhum deles incorporava um VAN de, pelo menos, 50%, pelo que o Estado só aceitou contabilizar 120 milhões como contrapartidas efetivamente realizadas.
Estado negligente
Nasceu aqui o litígio entre o Estado e a Ferrostaal, com os alemães a refutarem os cálculos dos peritos portugueses, alguns dos quais começaram, logo em 2005, a lançar alertas sobre o incumprimento, no âmbito da Comissão Permanente das Contrapartidas (CPC).
O Estado demorou a reagir. Só a 19 de setembro de 2008, com os alemães a recusarem a regra de 50% de VAN, contratualmente estabelecida, é que o Estado assumiu claramente, através de um parecer do Departamento Jurídico do Ministério da Defesa, a existência de uma situação de incumprimento, considerando legítimo o recurso do Estado português à arbitragem.
Os casos relacionados com Viana do Castelo são emblemáticos do que sucedeu com os 39 projetos de contrapartidas. A execução do programa, que arrancou em 2004 e vigorou até outubro passado foi, no mínimo, deficiente.
Pelo menos três relatórios parlamentares, elaborados a partir de 2007, falam da incompetência e negligência do Estado nesta matéria, salientando sempre a má negociação dos contratos.
Finalmente, no outono passado, com a validade do contrato já a expirar, o Governo, através do Ministério da Economia, concluiu a renegociação das contrapartidas com os alemães da Ferrostaal, entretanto, com novos acionistas e nova administração.
Nessa altura, a execução das contrapartidas, segundo as estimativas do Executivo, cifrava-se nos 40 por cento. Em números redondos: num total de 1 200,43 milhões de euros de contrapartidas, faltava ainda realizar 720,26 milhões de euros, correspondendo a 19 projetos.
Ora, com a renegociação, esses 19 projetos em falta converteram-se em dois, suscetíveis, segundo o Governo, de gerar 800 milhões para a economia portuguesa. Trata-se, em primeiro lugar, de creditar, como contrapartidas 200 milhões de euros de investimento da Ferrostaal na empresa de energias renováveis Koch Portugal. E, em segundo lugar, de aceitar o polémico investimento de 150 milhões num hotel de luxo, no Algarve, que o Governo diz poder gerar um total de 600 milhões para a economia portuguesa.
A ideia, garante-nos fonte governamental, foi concentrar o volume de investimento em grandes projetos, em vez de o pulverizar por outros mais pequenos, com problemas de concretização.
Um hotel no Parlamento
A entrada na reconstrução e renovação do Alfamar Beach Resort, na praia da Falésia, é uma decisão controversa. “Danosa do interesse da economia nacional”, nas palavras do deputado comunista António Filipe, que, na quinta-feira, 29, reclamou a presença do ministro da Economia, Álvaro Santos Pereira, no Parlamento. O Bloco de Esquerda secundou, pedindo uma comissão de inquérito. E Álvaro Santos Pereira manifestou a sua disponibilidade para ir à Assembleia da República dar explicações.
Já antes, em declarações ao jornal Público, o deputado Basílio Horta, eleito pelo PS, manifestara a sua estranheza. E confirmou-a à VISÃO, minutos depois da intervenção de António Filipe. Afinal, o empreendimento algarvio era algo que conhecia bem. Enquanto presidente da agência portuguesa de investimento, AICEP, Horta acompanhara aquele empreendimento, no âmbito dos Projetos de Interesse Nacional (PIN).
O investimento de 100 milhões (era esse o valor em que, na altura, estava avaliado, não em 150 milhões, como aparece agora nas contrapartidas) ia ser feito de qualquer maneira”, comentou.
Segundo o Governo, o projeto estava parado por falta de financiamento e incluí-lo nas contrapartidas foi uma forma de garantir a sua realização. Para Basílio Horta, isso não faz qualquer sentido. Pelo menos até há um ano, quando ele saiu da AICEP, os investidores alemães nunca invocaram falta de dinheiro. O hotel, destinado a servir como unidade de luxo da cadeia Ritz Carlton, enquanto PIN, tinha prioridade nos meandros da burocracia. Até as questões ambientais, nomeadamente a exigência de que o projeto se localize a um mínimo de 80 metros da orla marítima, já foram desbloqueadas.
Lançado, nos anos 70, por um empresário alemão, o Alfamar funcionou, sobretudo, para o mercado emissor germânico e pertenceu a um fundo imobiliário do Deutsche Bank até passar, em março, para as mãos do MPC Capital, um grupo alemão que controla ativos nas áreas da navegação marítima, imobiliário e energia, entre outras, num valor de 18 900 milhões de euros. Parte desses ativos é, também, desde março, a Ferrostaal.
Foi, por essa altura que o Ministério de Álvaro Santos Pereira começou a renegociar as contrapartidas. “Preferimos a renegociação dos projetos a ter de recorrer à arbitragem”, diz uma fonte governamental, salientando que, de acordo com o articulado, o Estado teria de esperar, pelo menos, um ano até poder requerer a arbitragem – aliás, a única maneira de o Estado dirimir as divergências com o fornecedor foi abdicar da possibilidade de recorrer aos tribunais convencionais.
Mas essa não deve ter sido a única razão. O contrato de contrapartidas assinado em 2004 está cheio de armadilhas. Há uma cláusula (a 18.ª) a estipular que, em caso de “incumprimento definitivo, por dolo ou negligência”, o consórcio alemão pagará 10% “da diferença entre o valor contabilizável e o valor contabilizado”. Quer dizer, um décimo do montante não cumprido de contrapartidas: se os alemães tivessem decidido não cumprir o contrato (dolo direto), tendo em conta os 60% de contrapartidas não executadas em outubro passado, limitar-se-iam a indemnizar o Estado em 72 milhões de euros.
A vulnerabilidade do Estado perante a Ferrostaal ia ainda mais longe: a cláusula 19.ª impede a indemnização pelos danos causados em caso de incumprimento e estipula que “a responsabilidade do adjudicatário (…) é limitada a um montante máximo global correspondente a 10 por cento”. Além de que “não haverá lugar ao pagamento pelo adjudicatário, em caso de incumprimento de outras obrigações, de qualquer indemnização por danos excedentes, prejuízos indiretos e lucros cessantes”.
Perante um articulado como este, conclui-se facilmente que o Estado não tinha alternativa à renegociação.
O ministro da Economia enviou, entretanto, cópias do novo contrato ao Tribunal de Contas, para análise, e já as cedeu aos advogados dos arguidos, no processo que está a ser julgado em tribunal e que envolve três gestores alemães da Ferrostal e sete portugueses, acusados de burla na execução das contrapartidas. É que a defesa dos acusados está a tentar usar a renegociação das contrapartidas para obter a anulação do processo. O argumento é o de que a nova documentação revê as obrigações contratuais, logo, deixa de haver danos para o Estado, o que põe fim à responsabilidade criminal dos acusados.
Depois de tantos anos de promessas, o processo de compra de submarinos continua a prometer. Agora, ao que parece, a absolvição dos arguidos de terem participado num esquema de burla e falsificação de documentos, que terá lesado o Estado e os contribuintes em 34 milhões de euros.
Cronologia – Duas décadas submarinas
1993
- 31 de agosto – Lei de Programação Militar, prevendo um investimento, até 1997, de 73,8 milhões de contos (€358 milhões) na “manutenção da capacidade submarina”
1998
- 30 de janeiro – Inicia-se o processo de seleção de um fornecedor de três submarinos.
1999
- 24 de setembro – O ministro da Defesa, Jaime Gama, seleciona dois consórcios para a fase de negociações: os franceses da Direction des Constructions Navales International (DCN-I) e os alemães do German Submarine Consortium.
2003
- abril – O ministro da Defesa Paulo Portas reduz o compromisso de três para dois submarinos.
- 6 de novembro – Paulo Portas recomenda ao Governo que se adjudique a encomenda aos alemães. Um relatório técnico que acompanha a decisão do Executivo avalia as “Perspetivas de concretização/credibilidade” da proposta de contrapartidas alemã com a nota “fraco” e a francesa com nota “médio”.
- 12 de novembro – Os franceses recorrem para o Supremo Tribunal Administrativo a fim de este anular a decisão.
2004
- 21 de abril – Paulo Portas assina os contratos dos submarinos com o GSC.
- 6 de agosto – O STA chumba o recurso dos franceses.
2006
- julho – No caso Portucale, aparecem ligações ao negócio dos submarinos e suspeitas de corrupção. O Ministério Público abre um processo autónomo só para os submersíveis.
2009
- 29 de setembro – Na sequência de uma segunda investigação derivada da iniciada em julho de 2006, o Ministério Público acusa três alemães e sete portugueses de burla qualificada e falsificação de documentos, relacionados com as contrapartidas à aquisição dos submarinos.
2010
- março – Detido, na Alemanha, um administrador da Ferrostaal (líder do consórcio GSC), no âmbito de um caso de corrupção relacionado com a venda de submarinos à Grécia e Portugal. Jürgen Adolff, consul honorário de Portugal em Munique, aparece envolvido.
- 2 de agosto – O Tridente, primeiro dos dois submarinos encomendados, chega à base naval do Alfeite.
2011
- 25 de janeiro – O juiz Carlos Alexandre decide levar a julgamento todos os arguidos do processo das contrapartidas. O Estado quer uma indemnização de €34 milhões.
- 17 de março – Segundo a justiça germânica, dois ex-quadros da Ferrostaal pagaram €62 milhões em luvas para garantir as encomendas em Portugal e na Grécia.
- 30 de abril – Chega ao Alfeite o segundo submarino, Arpão.
- 16 de dezembro – Dois ex-executivos da Ferrostaal são condenados, na Alemanha, a uma pena suspensa.
2012
- 1 de outubro – O ministro da Economia assina um novo acordo sobre as contrapartidas com a Ferrostaal.
- 2 de outubro – O novo contrato é furtado da mala do carro de um gestor da empresa alemã.
- 19 de novembro – Início do julgamento do caso das contrapartidas.