A ambulância rasga as ruas de Lisboa a alta velocidade. No interior, seguem dois homens.
Estão sentados frente a frente, em silêncio. João Pereira, 39 anos, tem a camisa e o blazer manchados com gotas e fios de sangue. O técnico superior da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género leva a mão à cabeça, verificando o curativo que lhe fora aplicado pelos bombeiros, no Chiado. Nunca antes sangrara daquela zona do corpo, e nunca pensou que isso acontecesse durante uma marcha por melhores condições de vida.
João não é jornalista, nem pertence a nenhuma organização sindical ou movimento cívico. Naquela quinta-feira, 22, decidiu, juntamente com duas amigas, fazer greve e juntar-se à multidão que percorreu a Baixa lisboeta.
Quando subia a Rua Garrett, numa altura em que o Corpo de Intervenção (CI) da PSP já recebera ordem para varrer os manifestantes, recorda-se de sentir uma “paulada” na cabeça forte o suficiente para lhe perfurar a pele. “Tenho a certeza de que era um bastão, não tive tempo de olhar para trás, só queria sair dali.” O destino haveria de lhe pregar mais uma partida nesse dia. Minutos depois de ser agredido teve de partilhar o transporte para o hospital com um agente da PSP, ferido na face, na sequência do arremesso de uma chávena de café. João rangeu os dentes para se manter em silêncio. “Nunca mais vou olhar para a polícia da mesma forma”, garante o técnico, que trabalha com vítimas de violência doméstica.
A VISÃO enviou várias questões para a direção nacional da PSP, na expectativa de que algum responsável da instituição ajudasse a esclarecer o comportamento dos polícias que estiveram de serviço naquele dia. As respostas nunca chegaram.
Vários agentes disseram-nos que não compreendem porque foi ordenado ao CI que avançasse no terreno, sabendo-se de antemão que esta unidade especial funciona habitualmente como um rolo compressor, e está mais habituada a lidar, de forma indiscriminada, com a agressividade dos adeptos das claques de futebol. “Foi como levar um dobermann para uma luta de gatos”, refere um elemento do CI, sob anonimato. “Qualquer oficial da PSP sabe que o nosso modo de atuação é sempre mais ruidoso”, diz.
“No meio daquela adrenalina toda, é fácil cometer erros, sobretudo quando estamos a lidar com uma multidão onde estão manifestantes violentos, mas também senhoras, idosos, etc.” Elementos desta unidade ouvidos pela VISÃO garantem que este género de cenários nunca é simulado, durante os treinos. “Normalmente, são os nossos colegas [homens] que compõem uma multidão em fúria. Não há mulheres nem crianças”, confirma Manuel Morais, 37 anos, há duas décadas no CI.
“Temos ordens para dispersar pessoas, e conquistar terreno com o apoio das matracas, tendo a preocupação de atingir as zonas verdes do corpo dos manifestantes [costas, pernas, membros]”, refere o polícia, que estava de folga naquela quinta-feira. “Apesar das ordens serem claras, a verdade é que, nesse dia, chegaram ao Hospital de São José várias pessoas que apresentavam golpes na cabeça. “Vi, pelo menos, cinco homens nessa situação “, refere João Pereira o seu ferimento foi suturado com seis pontos.
O funcionário público foi maltratado praticamente no mesmo instante em que a fotojornalista Patrícia Melo é atingida pelo bastão de um agente das Equipas de Intervenção Rápida (EIR).
O polícia em causa saiu da formação, e, num movimento descontrolado e pleno de agressividade, projetou o seu bastão na direção da jornalista que ali estava ao serviço da agência AFP. “O que esses polícias fizeram não se desculpa ou justifica “, comenta Manuel Morais. “São erros tremendos, mas a verdade é que as EIR não têm formação suficiente em gestão de multidões. O que é ridículo, pois esses agentes são constantemente chamados para acompanhar manifestações.” Mas será que é preciso formação para não bater numa mulher com uma máquina fotográfica ao peito?
ERRO TÁTICO?
Naquela tarde registaram-se vários comportamentos anormais por parte dos polícias encarregados de dispersar a multidão. O descontrolo repetiu-se à medida que a coluna ia avançando nestas situações, os chefes de equipa seguem sempre nas extremidades e nenhum elemento pode sair da formação.
A certa altura, um dos agentes do CI para junto de uma senhora de idade, e empurra-a violentamente para o chão. Este polícia é um dos menos experientes da unidade ingressou há apenas um ano e, no entanto, integrava a fileira de homens que distribuíam bastonadas de forma indiscriminada. Mesmo tratando-se de jornalistas perfeitamente identificados, como era o caso de José Sena Goulão.
O fotógrafo da agência Lusa foi atirado contra uma moto e depois agredido por elementos do CI, enquanto estava tombado e indefeso.
Estes episódios motivaram várias queixas, manifestações de solidariedade, e obrigaram o ministro da Administração Interna a promover, na terça-feira, 27, uma reunião com o Sindicato de Jornalistas para discutir a situação. Miguel Macedo pretendia tornar obrigatório o uso de coletes de identificação por parte dos jornalistas. A pretensão foi rejeitada por se entender que tal deve ficar ao critério de cada órgão de comunicação social. O ministro tinha também prevista para o dia seguinte uma reunião com vários diretores de informação.
A atitude dos agentes mereceu vários reparos. “É lamentável que num Estado de Direito democrático tenhamos uma polícia com os mesmos tiques com que atuava nos tempos da ditadura”, disse Marinho Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, à agência Lusa. As imagens captadas por dezenas de fotojornalistas e cidadãos correram mundo, e despertaram o interesse de publicações internacionais como a revista norte-americana New Yorker ou o canal alemão de televisão ZDF, que estão a preparar matérias sobre o assunto.
“Julgo que os oficiais tomaram a decisão errada”, refere um agente. “Podíamos perfeitamente ter retirado da multidão os cerca de dez elementos agitadores.
Temos técnicas que nos permitem fazer isso em segurança.” E, assim, refere este polícia, ter-se-iam evitado os confrontos. Agora, é tarde.