“Para os polacos, quando viram a invasão há um ano, a primeira coisa em que pensaram foi em 1939, o ano em que foram invadidos primeiro pela Alemanha e depois pela Rússia, e ninguém os ajudou”, recordou Anne Applebaum, especializada em comunismo e Europa pós-comunista, professora na London School of Economic e Prémio Pulitzer, em 2004, com o livro “Gulag”.
Com vasta obra sobre o período soviético e ex-correspondente da revista Economist em Varsóvia, em plena Guerra Fria, Applebaum, nascida nos Estados Unidos mas que mantém fortes laços com a Polónia, lembrou, que, depois da agressão russa à Ucrânia, em 24 de fevereiro do ano passado, o primeiro instinto da sociedade polaca “foi dizer, ‘certo, nós vamos ajudar'”.
Este apoio é explicado “porque [as pessoas] sentem medo e têm memória da história”, disse a autora em entrevista à Lusa, a propósito do seu livro “A Cortina de Ferro — A Destruição da Europa de Leste”, lançado em Portugal na quinta-feira pela Bertrand.
Assinalando que “nada mudou na política interna polaca desde o início da guerra”, iniciada pela Rússia na Ucrânia em 24 de fevereiro do ano passado, e “em grande parte porque há um sentimento universal bipartidário na Polónia”, prevalece o pensamento, com algumas exceções, de que se [o Presidente russo, Vladimir] Putin vencer, “o próximo país a ser invadido será a Polónia”.
Naquelas semanas iniciais da invasão, Anne Applebaum descreveu que “muitas pessoas comuns levaram os seus carros para as fronteiras para recolher refugiados e cuidar dos refugiados na Ucrânia tem sido quase inteiramente um tipo de projeto cívico na Polónia”.
Mas, advertiu, esse “não foi um projeto de governo” inicialmente, mas da sociedade civil, em que muitos ucranianos permanecem em casas de polacos, o que foi também o seu caso, e posteriormente o Governo de Varsóvia assumiu a ajuda aos refugiados e “tem sido muito ativo nos seus esforços para apoiar a guerra”.
Mas isto, advertiu, “não está relacionado com a política interna polaca”, foi uma tentativa apartidária de toda a nação da Polónia de ajudar a Ucrânia”, porque “sente medo e porque tem memória da história”.
O momento histórico conduz à realidade de que países anteriormente dominados pela doutrina comunista estão hoje sob regimes extremistas de sentido contrário, como a própria Polónia e Hungria.
Para Anne Applebaum, este é um significado de que “a Europa de Leste se tornou parte da Europa”, porque os mesmos tipos de comportamentos extremistas políticos podem ser encontrados em França, Espanha ou Holanda.
“Não é tão diferente do que [o ex-Presidente norte-americano] Donald Trump ou do que [antigo líder brasileiro Jair] Bolsonaro tentou fazer no Brasil, ou o que de facto López Obrador está a tentar fazer” no México.
“Na verdade, acabei de voltar do México há alguns dias e foi incrível para mim como a história é tão parecida ao que aconteceu na Polónia há três ou quatro anos e tentativas muito semelhantes de mudar o sistema eleitoral”, lamentou. “Tratava-se de mudar o sistema judicial, tudo com o objetivo de manter um populista no poder”, seja de esquerda ou direita.
A Polónia tem estado sob um regime autocrático, mas o conflito na Ucrânia devolveu uma nova centralidade ao leste da Europa, concretamente Varsóvia, que tem estado na linha de frente no apoio a Kiev e enfrentando as próprias lideranças da NATO e ds aliados nesse sentido.
“A guerra na Ucrânia, se Putin a vencer, o próximo país a ser invadido será a Polónia”, advertiu Anne Applebaum, justificando os alarmes de Varsóvia.
A historiadora distancia-se porém de comparações com a Guerra Fria, porque “o mundo moderno é mais diversificado e mais complicado e há muito mais do que duas superpotências e muitos outros países que têm interesses no que está a acontecer” e têm interesses diferentes.
“Não é como se fossem apenas dois lados. Penso que estamos numa era em que é muito mais perigosa, na qual a guerra é mais provável do que era no passado e que a paz de que desfrutámos, e que provavelmente não apreciámos o suficiente, nos últimos 60 ou 70 anos”, comentou.
Anne Applebaum dirige um projeto de investigação sobre desinformação e propaganda, centrado na Rússia, salientando, porém, o papel do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, na forma como “ele comunica usando o seu telemóvel, como está vestido como um soldado comum”.
“Ele está a procurar transmitir um tipo de autenticidade e emoção genuína que funciona, porque é verdade”, observou a historiadora: “os ucranianos acreditam que o seu país foi atacado de uma maneira não provocada e tentam galvanizar-se a si mesmos e aos seus aliados” e essa “é a única história que eles querem contar”
Quanto aos russos, “tentam mudar de assunto e culpar outras pessoas”, responsabilizando a NATO, lançando os agentes de informação na Europa e nos Estados Unidos.
“Portanto, há grupos, pessoas e partidos na extrema-esquerda, bem como na extrema-direita, que apoiam as posições russas sobre a guerra e podem ser ouvidos, repetindo-as, avisou Anne Applebaum.
A guerra de informação, defendeu, é “tão importante quanto o que acontece no terreno”, havendo grupos financiados pelo Kremlin, através de acordos comerciais ou mais diretamente.
A historiadora apontou ocaso da candidata de extrema-direita às presidenciais francesas Marine Le Pen, que recebeu um empréstimo direto de um banco controlado pela Rússia.
Por outro lado, “Putin tentou retratar-se como um protetor dos valores cristãos ou dos valores brancos cristãos e isso atrai alguns na extrema-direita”, mesmo que a Igreja cristã não seja relevante na Rússia, até comparando com a minoria muçulmana.
Estes e outros gestos levaram a simpatias nos extremos, o que é explicado, em parte por dinheiro transferido, de acordo com a historiadora, e outra por “pessoas que não gostam dos seus próprios sistemas políticos, não gostam das suas próprias democracias, não gostam dos seus próprias países”, como relevaram as eleições dos ex-presidentes dos Estados Unidos, Donald Trump, ou do Brasil, Jair Bolsonaro.
“Portanto, parte da simpatia [com Putin] é ideológica, parte é dinheiro”, prosseguiu, a fim de tentar encontrar alguém na sua liderança, à direita e esquerda. Isto alinha-se com um “antiamericanismo muito antigo, com o qual se simpatiza também”, embora de forma “não muito bem informada” sobre a Rússia moderna, que é “não é muito propícia”, por exemplo, a quaisquer ideias de esquerda, embora talvez essas pessoas “associem-na à antiga União Soviética”.
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