Vladimir Putin assinou esta quinta-feira um decreto que permitirá a incorporação de mais 137 mil soldados no exército a partir de 1 de janeiro de 2023. Desde o início da guerra, a 24 de fevereiro, que a Rússia tem ocultado os números oficiais de mortos e feridos do seu exército. Ainda assim, várias autoridades ocidentais estimam que estes possam atingir os 70 a 80 mil soldados, o que justificaria a mais recente decisão do Presidente russo.
A adesão ao exército tem sido incentivada pelo Kremlin desde o primeiro dia da invasão, de apelos na televisão e redes sociais a intervenções na rua, todos os homens russos entre os 18 e os 60 anos têm sido convidados a unir forças para vencer a guerra, nomeada pelo Presidente russo como uma “operação militar especial”. O decreto assinado por Putin pode, no entanto, assumir-se como um possível indicativo do enfraquecimento das forças russas e da necessidade cada vez mais acentuada de reforçar o capital humano que foram perdendo ao longo dos seis meses de conflito.
O decreto não deixa claro se esta expansão do exército será feita através do recrutamento de mais voluntários ou expandido o serviço militar obrigatório, ou mesmo implementando ambas as medidas. Atualmente, os homens russos entre os 18 e os 27 anos estão sujeitos a recrutamento, embora muitos possam evitar ou reduzir o seu período de serviço, geralmente por um ano, recorrendo a atestados médicos ou matriculando-se no ensino superior.
Na eventualidade do Kremlin aumentar os seus esforços recrutando mais voluntários, é necessário ter em conta um pormenor decisivo: os cidadãos russos querem integrar o exército? “(A guerra) é muito dolorosa até mesmo para se falar”, diz à BBC uma cidadã russa não identificada. “Matar os nossos irmãos é errado”, acrescenta. Apesar de ainda muitos estarem a favor dos avanços da Rússia sobre a Ucrânia, as opiniões do povo russo em relação à guerra dividem-se e muitos têm vindo a recusar-se a participar em qualquer atividade relacionada com a mesma, ora por serem contra, ora por recearem não regressar.
Numa tentativa de contornar esta tendência e atrair novos recrutas, as autoridades russas têm oferecido aos voluntários quantidades significativas de dinheiro, terrenos e até vagas privilegiadas para os seus filhos em diversas instituições de ensino do país. Em algumas situações, os recrutadores chegaram mesmo a visitar prisões russas com o objetivo de inscrever presos no exército, atraindo-os com promessas de liberdade e dinheiro.
Medidas como as referidas vêm reforçar a narrativa de que existe, de facto, uma crescente necessidade de novos recrutas para o exército russo, mas cada vez mais dificuldades nesse recrutamento. “O problema do Kremlin é que a maioria dos russos não está disposto a morrer por Putin ou pela restauração do ‘grande império’. O recrutamento não é possível nas atuais circunstâncias porque não há consenso civil na Rússia para a guerra”, explica à BBC o analista Pavel Luzin. “Comparemos isto com a Ucrânia. Os ucranianos estão prontos para lutar “, acrescentou.
Tal como Luzin, vários especialistas defendem que o número de voluntários que aderem ao exército é baixo, retratando uma realidade diferente daquela descrita pelo Presidente russo. “Eles têm um sério problema de mão de obra”, defende, em resposta à U.S.News, o tenente-general, agora reformado, Ben Hodges, cuja última posição antes de se reformar incluía o comando de todas as operações do exército dos EUA na Europa a partir do ano em que a Rússia invadiu a Ucrânia e anexou a Crimeia em 2014. “Sinceramente, não me parece que haja muitas pessoas que querem estar no exército russo agora”, acrescenta.
A falta de interesse em aderir às forças russas pode também ter origem no sentimento de desconfiança no governo que se tem vindo a fomentar entre o povo russo. De acordo com o testemunho do jornalista de investigação Roman Dobrokhotov, à BBC, as promessas feitas pelo Kremlin para incentivar voluntários à inscrição no exército não chegam a ser cumpridas, desde o dinheiro a tudo o resto. “As pessoas não veem esse dinheiro”, conta. “Estão a voltar [da Ucrânia] agora e a dizer-nos a nós, jornalistas, como foram enganadas. Isto também influencia a situação, esta falta de confiança no nosso governo, não acho que esta estratégia tenha sucesso”.
A mãe de um jovem voluntário de 24 anos morto nos seus primeiros dias de combate conta ao mesmo órgão de comunicação que o filho foi enviado com uma preparação mínima, apesar de, segundo a lei russa, todos os recrutas terem de ser sujeitos a um treino de, pelo menos, quatro meses antes de serem enviados para a guerra. “Eles mandam-nos simplesmente como galinhas tontas! Mal seguraram uma arma antes”, desabafa. O recrutamento deste tipo de jovens mal preparados é, de acordo com Dobrokhotov, um sinal de desespero por parte das autoridades russas. “Estes não são o tipo de soldados necessários para uma guerra vitoriosa. O Kremlin ainda espera que a quantidade possa vencer a qualidade. Acham que podem pegar nestas centenas de milhares de pessoas desesperadas com as suas dívidas e simplesmente atirá-las para a zona de conflito”, argumenta.
Uma vez que existe um intervalo de quatro meses de treino obrigatório para novos recrutas, impõe-se ainda a questão do quão rápido Putin conseguiria, de facto, expandir o seu exército até porque, além da preparação física, é também necessário fornecer veículos, rações e outros equipamentos que já parecem, por si só, escassos para as forças atualmente em serviço. “Se Putin dissesse ‘Vamos fazer uma grande mobilização’, mesmo que o fizesse, levaria meses até que tivesse um número de tropas treinadas, organizações e formações preparadas para lutar. E eles não têm o equipamento para novas tropas”, explica Hodges.
Em resposta à U.S.News, Colin Kahl, um dos membros do Pentágono, a sede do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, chegou mesmo a nomear os esforços de Putin “mais um erro de cálculo” do seu governo.