Com os ataques do exército russo há mais de vinte dias em ação em território ucraniano, decorre em simultâneo a divulgação de propaganda estatal vinda do Kremlin que está a criar um fosso gigante entre gerações, afastando e opondo pais e filhos.
Desde o terceiro dia da invasão russa na Ucrânia, que Victoria Gogh percebeu que a mãe não poderia estar mais distante dela, no que ao pensamento diz respeito. Ao telefone, as conversas entre mãe e filha deixavam perceber como a mais velha começava a repetir a narrativa do governo russo sobre a guerra. Em causa estaria que “tudo era culpa da Nato e que a Rússia não tinha escolha a não ser defender-se”.
Para Victoria Gogh, 28 anos, consultora de moda natural de uma pequena cidade na Sibéria, que se mudou para Moscovo e se opôs fortemente à invasão da Ucrânia pela Rússia nas suas redes sociais (enquanto as teve disponíveis), “tornou-se uma missão mudar a ideia, mostrar à minha mãe o que realmente estava a acontecer”, disse a jovem ao jornal The Guardian.
Não bastavam as divisões no terreno, com os homens a ficarem para combater, enquanto as suas mulheres e filhos partem para lugares mais seguros, e a guerra ordenada por Vladimir Putin ainda está a segregar famílias ucraniano-russas, com as gerações mais velhas a voltarem as costas às opiniões e relatos das mais novas.
“Em termos gerais, os russos mais jovens são menos propensos a ter sentimentos anti-ucranianos. Vimos que os protestos contra a guerra também envolveram amplamente os jovens”, disse Andrei Kolesnikov, do Carnegie Moscow Center, gabinete estratégico de política interna e externa. “Muito de como se compreende a guerra depende de onde a pessoa recebe as notícias. Quem assiste a televisão, é mais provável que siga a linha oficial do governo russo. E as pessoas mais velhas tendem a assistir mais a televisão”, acrescentou.
Investigações anteriores mostram que a televisão continua a ser a maior fonte de informação para os russos, com mais de 60% da população a confiar nela para obter conhecimento. Os russos com mais de 65 anos são 51% mais propensos a assistir a televisão do que os menores de 25 anos.
Todo o empenho da comunicação social estatal russa foi mobilizado para retratar a guerra como uma “operação militar especial” – aliás, as palavras “guerra”, “invasão” e “ofensiva” estão proibidas de surgir nos ecrãs de televisão ou nas páginas dos jornais – destinada a libertar a Ucrânia e a proteger os cidadãos em Donbas do “genocídio” ucraniano.
Vídeos de bombas russas a atingir cidades foram descritos como encenados pelo lado ucraniano. “Vemos que a maioria dos russos parece apoiar as ações do país, pelo menos da maneira como essas ações lhes são apresentadas pelos media”, explica Andrei Kolesnikov.
Para o analista político é natural que, dada a sensibilidade do tema, que a guerra tenha criado tensões entre famílias e amigos: “É muito difícil para as pessoas aceitarem que o seu lado são realmente os bandidos.”
Victoria Gogh, que entretanto decidiu deixar o país na semana passada depois de ter sido detida por participar num protesto anti-guerra em Moscovo, deu um passo em frente: finalmente conseguiu convencer a mãe, Svetlana, do “papel devastador” do seu país na guerra. “Mas agora ainda tenho de convencer os meus primos e tios mais velhos.”
Depois de o Facebook e o Twitter restringirem o seu acesso na Rússia, foi a vez de o Instagram anunciar o bloqueio na semana passada. Quantas mais redes sociais se fecharem à população russa, mais difícil fica o acesso a informação que não seja proveniente de fonte oficial do estado, ou seja, os russos só sabem o que Putin deixa que saibam e da maneira que quiser contar a historia. Um ângulo sempre enviesado, apesar de ainda funcionarem alguns meios de comunicação independentes na Rússia.
Também na família de Dmitry, consultor de tecnologia em Moscovo, a guerra já teve consequências desastrosas. “Depois da invasão, quis ir morar com os meus pais para lhes tentar contar o que realmente estava a acontecer”, relatou. Durante a primeira semana de ofensiva militar, manteve o ritual diário de mostrar aos pais vídeos de bombardeamentos russos em cidades ucranianas e relatórios críticos de bloguers independentes e meios de comunicação.
“Mas nada disso teve qualquer impacto. Na verdade, isso só os deixou mais convencidos de que estavam certos. Depois de uma semana, deixei a casa deles e a minha mãe enviou-me uma mensagem de texto a dizer que estou a trair o meu país.”
A gota de água aconteceu na semana passada, quando o pai enviou a Dmitry um vídeo de notícias em que afirmavam que o atentado a uma maternidade em Mariupol tinha sido encenado pelas autoridades ucranianas, com atores a fazerem passar-se por mães feridas. Uma teoria da conspiração que também foi promovida pelas autoridades russas. “Isso deixou-me com muita raiva. Não tenho certeza se poderemos voltar a sentar-nos à mesma mesa novamente”, lamenta Dmitry. “Acho que eles foram zombificados pela propaganda do estado e realmente veem-me como um inimigo. Desisti.”
Ao longos dos vários dias de ataques russo houve mesmo quem tenha passado por situações de perigo e de bombardeamentos perto e nem mesmo esses relatos, na primeira pessoa, foram suficientes para os pais na Rússia.
À BBC e ao New York Times, Oleksandra, de Kiev, disse: “Os meus pais percebem que alguma ação militar está aqui a acontecer. Mas dizem: ‘Os russos vieram para libertá-los. Eles não vão estragar nada. Eles não vão tocar nas pessoas. Estão apenas a apontar para as bases militares’”.
Ilya Krasilshchik, um popular bloguer russo, pediu aos seus 110 mil seguidores no Instagram que lhe enviassem as histórias de desavenças familiares e recebeu centenas de capturas de ecrã de jovens russos, com trocas acesas de mensagens entre pais e filhos. Decidiu publicar algumas dessas conversas para mostrar aos jovens russos que não são caso único.