Desde 24 de fevereiro, dia em que o presidente da Rússia, Vladimir Putin, decidiu invadir o seu vizinho a oeste, o conflito militar tem sido quase ubíquo em grande parte das plataformas de comunicação portuguesas e mundiais. Manchetes de jornal, emissões televisivas incessantes, especialistas cativos a debater nas rádios, um fluxo torrencial de declarações, fotografias e vídeos nas redes sociais e atualizações ao minuto pela internet fora. Pela primeira vez, temos a tecnologia e os meios necessários para acompanhar uma guerra 24 horas por dia.
Muito deste conteúdo chega diretamente pela voz do povo ucraniano, que partilha diariamente as suas experiências e angústias através de redes sociais como o Twitter, Facebook ou Instagram. O próprio presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, tem vindo a publicar regularmente vídeos e proclamações combativas no Twitter e na rede social Telegram, aproveitando a sua plataforma mediática para apelar ao apoio internacional e estimular o movimento de resistência ucraniano.
“Mauripol. Ataque direto das tropas russas na maternidade. As crianças estão debaixo dos destroços. Atrocidade! Por quanto mais tempo vai o mundo ser cúmplice e ignorar o terror?”, escreveu, a 9 de março, no Twitter, depois de uma maternidade pediátrica em Mariupol ser bombardeada.
Com tudo isto, colocam-se várias questões: porque é que a Rússia não elimina a rede de telecomunicações da Ucrânia? Porque não interrompe os serviços de internet? Não seria o caos gerado por estas ações benéfico para os soldados russos?
Espionagem, excesso de confiança e problemas de logística
Vários especialistas em cibersegurança sugerem que o Kremlin poderá ter deixado as redes de telecomunicação intactas de modo a ter acesso a conversações privadas entre os líderes ucranianos. Desta forma, poderiam estar sempre um passo à frente da oposição, antecipando as manobras militares no terreno – passariam a saber “onde as forças estão concentradas” – e as diretivas da cúpula política de Kiev. “Se conhecerem os números de certas pessoas, políticos, soldados, tropas, podem observar os movimentos”, refere Ariel Parnes, antigo oficial israelita de cibersegurança.
Estas potenciais infiltrações são facilitadas pela natureza do sistema de telecomunicações da Ucrânia. A tecnologia usada é muito semelhante à russa e, até 2014, ano marcado pela invasão de Putin à Crimeia, muitas das operadoras telefónicas do país eram geridas por russos ou russo-ucranianos leais ao regime de Moscovo. Desde então, os “ucranianos têm-se esforçado bastante para melhorar a sua proteção cibernética”, diz Mark Montgomery, analista na Foundation of Defense for Democracies, nos Estados Unidos, citado pelo site Defense One, mas esse esforço pode não ter sido suficiente para dissuadir Putin.
Outra teoria aponta para o excesso de confiança do presidente russo, que terá subestimado a reação ucraniana e pensado que a invasão ia ser rápida e relativamente pouco violenta. Nesse caso, Moscovo pretendia deixar as infraestruturas de comunicação em bom estado para depois ser mais fácil governar sobre Kiev.
A Rússia já teve dificuldades semelhantes na Crimeia, depois da anexação, onde demorou três anos a reestabelecer as redes de internet e comunicação telefónica, segundo um estudo publicado em 2020. Não é difícil prever que o mesmo processo no território ucraniano, cuja área é superior à de países como a França ou a Alemanha, seria ainda mais prolongado e obrigaria a despesas ainda mais avultadas – o que poderá ter motivado o raciocínio de Putin.
Potenciais problemas de logística sentidos pelo exército russo no terreno também podem ajudar a explicar a inação por parte do Kremlin. Primeiro, há relatos de que os soldados russos estarão a usar as redes locais comerciais ucranianas para comunicar entre si. Surgiram fotografias no Twitter que pareciam indicar que as tropas usavam rádios portáteis de baixa qualidade, os walkie-talkies, e telemóveis locais para transmitir as mensagens necessárias. Nesse caso, danificar as comunicações e a internet da Ucrânia poderia prejudicar o próprio exército russo.
Em segundo lugar, desligar a rede de telecomunicação de um país sem o auxílio dos provedores locais é, de acordo com os especialistas, extremamente complicado. Alp Toker, membro da NetBlocks, organização dedicada a monitorizar sinais de internet, diz que “a Ucrânia tem uma infraestrutura de internet muito diversa – isto significa que é difícil desligar o país, não existe um interruptor centralizado”. Se os russos quisessem desligar a internet da Ucrânia, teriam de “entrar fisicamente nos nós de interconexão e nos centros de dados e assenhorar-se dessa infraestrutura”. Mesmo um ciberataque causaria apenas danos circunstanciais, e seria facilmente contrariado. “Não é possível fazê-lo de forma remota”, conclui Toker.
Nem todas as regiões da Ucrânia são afetadas da mesma forma
No geral, o acesso à internet diminuiu cerca de 20% em toda a Ucrânia, mantendo-se, no entanto, a um nível considerado regular nos grandes centros populacionais, diz Alp Toker. Mas há exceções. Um relatório da ThousandEyes, uma empresa especializada em serviços de internet, diz que tem sido difícil aceder a certos sites de instituições bancárias e governamentais ucranianas desde os primeiros dias da invasão. As regiões mais afetadas por ataques russos também registaram perturbações no tráfego de internet, algumas ficando totalmente sem acesso. É o caso de Mariupol, no sul da Ucrânia, que tem sido particularmente fustigada pela ofensiva russa, onde não há conexão desde a semana passada, ou de Severodonetsk, a este.
Particularmente preocupante também é a falta de sinal nas zonas próximas da central nuclear de Zaporiyia. Inicialmente tomada pelas tropas russas a 3 de março, a central de Zaporiyia é a maior da Europa, sendo responsável por um quinto da eletricidade ucraniana. Os sinais de internet e telemóvel foram desligados dia 4 de março e permaneceram a zeros durante vários dias, segundo a NetBlocks. Pouco tempo depois, a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) anunciou, num comunicado publicado a 9 de março, que já não tinha acesso às transmissões do sistema que instalou em Zaporiyia para fazer a supervisão do material nuclear da central, incluindo o nível de radiação.
“A desconexão da internet de linha fixa e algum serviço de telemóvel na zona próxima da central nuclear de Zaporiyia na Ucrânia está a ameaçar a segurança pública, os níveis de radiação já não estão a ser publicados e a AIEA já não consegue supervisionar a central”, lê-se, numa publicação na conta de Twitter da NetBlocks.
“As comunicações fiáveis entre o regulador e o operador são uma parte crítica da segurança e proteção nuclear em geral. Estou extremamente preocupado com estes desenvolvimentos”, alerta Rafael Mariano Grossi, Diretor-Geral da AIEA.