“Tenho a minha família na Ucrânia, e já não conseguem sair porque as fronteiras estão fechadas”, diz-nos Mila, português perfeito, voz carregada de preocupação. Vive há 18 anos em Portugal, onde está com o marido e os filhos, mas a mãe, de 72 anos, fez finca pé na decisão de não abandonar Nova Kakhovka, no sul da Ucrânia, relativamente perto da região da Crimeia.
“Estou muito triste e muito preocupada”. A sogra e os cunhados, junto com os sobrinhos pequenos, estão já num bunker e a mãe tem uma cave, na sua moradia, preparada para a receber quando a situação se agravar. “Para já, vai estar três dias sem eletricidade. O que significa que vai ficar também sem água”, revela.
Mila queria a família em Portugal, e foi isso que tentou dizer-lhes durante as últimas semanas, quando o escalar do conflito fazia adivinhar a ofensiva concretizada esta madrugada. Para já, as comunicações ainda são constantes, mas Mila teme que também isso que possa mudar.
A internet tem estado errática naquela região, como conta à Visão Catalin Schitco. A avó vive em Zahoreni e a restante família em Ștefan Vodă, junto a Odesa, na Moldávia. Apesar de a invasão ser no país do lado, “a minha avó relatou-nos que conseguia ouvir as explosões ao fundo, falou de estrondos e de como se sentia a terra a tremer em intervalos de 25 a 30 minutos. Foi o que ela nos contou”. A última comunicação com o neto aconteceu esta madrugada, através do Viber, e desde então perderam as comunicações com a septuagenária.
“Tínhamos comprado voos [para a trazer da Moldávia], mas tanto os aeroportos internacionais de Kiev, na Ucrânia, como o de Chisinau, na Moldávia, foram encerrados. “Só a conseguimos tirar pela Roménia, e já falámos com a Embaixada da Roménia, em Bucareste, mas estamos em lista de espera, porque são muitos os pedidos de asilo e nós somos só mais uns”, lamenta. A avó, ainda assim, está relativamente tranquila. “Isto dá-lhe alguma animação. Uma distópica alegria de quem vive no país mais pobre da Europa…”
Para já, a família está em relativa segurança, e os tios que vivem em Chisinau vão inclusivamente receber duas famílias de refugiados ucranianos que conseguiram sair do país entretanto.
O mesmo não se pode dizer da família de Natalia Tesko. Em Kakhovka, os pais recusam-se a abandonar a sua casa, apesar dos insistentes pedidos da filha ao longo das últimas semanas. Vivem a cerca de 20km de Lviv e a pouco menos de 70km da fronteira com a Polónia. Se se metessem no carro, conseguiriam chegar àquele território facilmente, e daí vir para Portugal.
É em lágrimas que acrescenta, em declarações à VISÃO, que o irmão é militar, o que significa que já está na linha da frente. “Esteve na guerra, foi para a reserva onde esteve dois anos e agora foi novamente chamado e é a minha maior preocupação. Já sofri tanto com os seis anos em que ele esteve na guerra…”
Depois de alguns segundos de silêncio onde se ouviu apenas a respiração a normalizar, Natalia recupera a energia para afirmar que o país não se vai render facilmente. “Em 2014 as nossas tropas não tinham nada. O mundo fala de ultra-nacionalistas que lutaram nessa altura, acusando-os, mas eles estiveram a lutar ao lado dos nossos militares, de chinelos de praia calçados. Ali, na linha da frente, a lutar contra mercenários russos. Putin pediu para falar de novo com [Volodymyr] Zelenskyy, mas se o nosso parlamento quiser assinar um tratado de paz com a Rússia, duvido de que o povo deixe”, continua. “Não acredito que o povo vá entregar o País. Não vamos capitular”, acredita.
Natalia conta ainda a história de uns amigos que vivem “muito perto da Crimeia”, numa cidade onde “o exército russo já entrou e em cuja Câmara hasteou a bandeira. É uma cidade ucraniana!”, insurge-se.
No fundo, o que Natalia quer dizer é a que a invasão do país já começou e que a Rússia, “como sempre fez, está a mentir”.
“A Rússia é um país mentiroso, manipulador, não dá qualquer valor à vida dos cidadãos, das populações. Quando estudei História, na escola, aprendi que a União Soviética era a melhor do mundo. Quando comecei a ter acesso ao resto da História, percebi que tudo o que eu estudei era mentira. Quando o meu pai era pequenino, os meus avós foram mandados para a Sibéria. Estávamos em 1950. Foram declarados como inimigos do povo e foram-lhes retirados todos os bens. Desde pequeno que o meu pai sempre teve raiva da União Soviética e eu não percebia porquê. Só quando estudei o resto da História entendi o que ele queria dizer”, revela.
Por isso, entende que os pais não queiram abandonar o país que viram construir-se e libertar-se das amarras soviéticas, mas teme que a Rússia volte a fazer a família sofrer à semelhança do que fez com os seus avós.
Preocupa-se particularmente com a cunhada e o sobrinho de seis anos – “nenhuma criança devia passar por isto!” – que já lhe disseram que não saem da Ucrânia sem o chefe da família. Com o irmão no exército, Natalia sabe o que isso significa: que não sairão até ao fim do conflito.
“Putin não tem saúde mental”
Yana não consegue falar com a avó, que vive em Donetsk, há alguns dias. Desde que as comunicações foram cortadas, diz. “A minha família está dividida por várias cidades – e nenhuma daquelas onde está são as melhores para esta situação, porque são todas perto do mar, precisamente por onde a Rússia está a entrar. Tenho uma irmã em Odesa e outra em Kramatorsk – perto de Donetsk, ou seja, dos militares russos. Ela queria ir ter com a minha mãe, que está com a minha outra irmã em Skadovsk, e sei que até já tinha comprado o bilhete de comboio, mas não sabe se vai conseguir lá chegar, porque uma das cidades onde o comboio passa já está tomada pelos russos”, conta à VISÃO. “A minha outra irmã está muito perto da fronteira com a Moldávia, mas não têm possibilidade de mudar a vida assim”, lamenta.
“Há umas semanas convidei a minha família para vir passar algum tempo em Portugal, até a situação se resolver, porque tive muito medo. Já passámos por pior, portanto tentamos preparar-nos sempre para o pior. Mas não quiseram vir porque esperavam que as coisas melhorassem”, conta. A viver na Guarda, Yana está em Portugal desde 2014. Saiu da Ucrânia precisamente depois da Guerra da Crimeia, para fugir aos perigos de um país demasiado impactado por conflitos territoriais.
Tem estado em contacto com família e com amigos, muitos deles sem quaisquer hipóteses de sair do país, seja porque não têm passaportes, seja porque não têm condições financeiras para abandonar tudo e procurar outra vida. As famílias tentam juntar-se, dentro do país, e preparar as despensas para os conflitos que aí vêm e que não as deverão deixar sair de casa tão cedo.
“Muitas pessoas gostariam de sair, mas não é possível. Mesmo para quem tem condições. As estradas estão fechadas, os comboios para Lviv e outras fronteiras com a Europa estão bloqueados e então as pessoas não têm muita escolha”, explica.
Numa altura em que se ouve falar em mobilização obrigatória de todos os ucranianos com idades entre os 18 e os 65 anos, Yana teme ainda pelos familiares e amigos que terão de integrar as forças militares para combater um conflito que não pediram.
“Estou a sentir-me sem força, tal como me senti quando estava na Ucrânia em 2014. O máximo que podemos fazer é mandar donativos para o Exército ucraniano. Da sociedade civil, as únicas pessoas que podem fazer diferença são os russos. Se os russos saírem à rua para mostrarem que são contra o regime, acontece algo”, insta.
“O povo ucraniano é um povo lutador”
“Ontem à noite, antes de me ir deitar, uma conta que eu sigo no Twitter falava precisamente da grande probabilidade de Putin dar a ordem desta noite, e acordei às 4h, por acaso, para ver essa ordem dada”. As palavras são de Jorge Pereira, um português casado com uma ucraniana, que regressou com a mulher a Portugal em 2012, quando começaram a sentir as tensões na região.
Na Ucrânia tem uma cunhada e os sobrinhos e muitos amigos. Ninguém consegue sair.
“Conseguimos falar com eles sem grandes problemas, não há dificuldade, para já, na comunicação seja por WhatsApp seja por Viber ou mesmo por telefone. E pelo que temos sabido, está um caos um pouco por todo o lado. Os multibancos não têm dinheiro. As pessoas tomaram as lojas e os supermercados foram tomados de assalto”. Jorge fala de Zaporozhie, uma cidade muito perto de Dnipro, que serve de base de suporte ao exército para as operações no Donbass. “Será visada muito em breve pelas forças russas e do Donbass”, acredita Jorge.
“A nossa família, graças a Deus, tem dinheiro em dólares porque sempre tivemos essa preocupação de ter dinheiro em casa, mas não é o caso de muitos dos nossos amigos que são famílias relativamente pobres, com muitas dificuldades, que nem passaportes têm”, relata. “Mas de qualquer forma não há maneira de sair. Os aeroportos foram bombardeados, não há comboios…Agora estão a espera de saber se vai haver algum plano de evacuação”, revela.
“Há semanas que andamos a tentar que a irmã da minha mulher viesse, pelo menos com o filho, enquanto víamos como ia evoluir o conflito. Mas ela disse sempre que não porque não acreditava que isto pudesse acontecer”, lamenta. Já ele “não tinha a mínima duvida de que ia acontecer. Putin fez o que fez na Chechênia, depois em 2008 foi o que se viu na Georgia – as sanções não tiveram qualquer efeito –, depois em 2014 foi o que foi com a Crimeia e no Donbass e ele sente-se forte. A minha visão é que isto não vai lá com sanções”, atira.
“O povo ucraniano é um povo lutador, que já fez duas revoluções no século XXI. Poderá sofrer muitas perdas, poderá entrar numa guerra longa, mas não vai abdicar do país dele”, acredita Jorge. “Isso viu-se em 2004 e 2005 e viu-se em 2011 e 2012 quando o povo ucraniano lutou pelos seus direitos. E vai lutar desta vez também. A que preço? Tenho medo que seja um preço demasiado alto”.
Mais sanções, menos tolerância
A opinião é partilhada por praticamente todas as pessoas com quem a VISÃO falou, apesar de ninguém querer avançar também com a hipótese de uma guerra aberta. Yana Loginova defende que o Ocidente avance com o máximo de sanções possíveis, de forma a isolar a Rússia e a impactar o povo russo. “Sou contra o ódio que se cria contra os russos. Acho que devíamos manter-nos juntos, mas os russos têm o poder de parar esta guerra”, acredita. “Se agora aplicarem sanções muito fortes no campo económico, se isolarem a Rússia, se os proibirem de ir para outros países, talvez percebam a desinformação de que estão a ser alvos e vão para a rua parar isto”, sugere.
“O que devia ser feito, com certeza, e se vai ajudar ou não, não sabemos. Putin não tem saúde mental. Mas pelo menos era preciso a comunidade internacional fazer o máximo possível sem entrar em guerra. Estamos todos contra a guerra, não queremos que isto cresça para a III Guerra Mundial!”.
Para Natalia, o Ocidente tem efetivamente de subir o tom. “Tem de ser mais agressivo, tem de jogar o mesmo jogo. Putin está senil. Metade dos russos acredita nele – mas a outra metade não. Não se consegue perceber o que ele tem na cabeça. Eu acredito que ele pode mesmo lançar uma bomba atómica. Ele quer ser o mais poderoso. Só que o Ocidente é muito lento a responder, é muito brando…”, lamenta.
Catalin vai ainda mais longe e acredita que as sanções já “não são geradoras de paz”.
“Creio que o Ocidente tem sempre uma visão diplomática e que acreditamos que salvaguardamos a diplomacia. Mas Putin já ditou as cartas. É tempo de a NATO equacionar uma entrada militar nas áreas afetadas. Isso assusta-me, mas por cada segundo que achamos que podemos resolver as coisas pela diplomacia é mais um segundo em que pessoas inocentes morrem”, defende.
Em Kiev, a população em massa tenta abandonar a cidade, conta-nos Nadiia Kravchenko. “As pessoas estão em pânico e a tentar chegar à zona oeste e à Europa. As filas de carro praticamente não andam. O governo ucraniano praticamente não dá qualquer informação à população”.
Para já, Nadiia não tem intenções de abandonar o país – mas este é o primeiro dia da ofensiva militar. Tem tudo preparado para uma possível evacuação, mas está à espera de perceber como a situação se desenvolve. Para além de ter uma família grande, tem animais que se recusa a deixar para trás.
“Vivemos a 10 minutos do centro de Kiev e estamos abrigados em casa. Muitas pessoas estão escondidas nas suas caves ou nas estações de metro”, que estando a uma significativa profundidade, oferecem boa proteção contra os ataques aéreos, explica-nos. Os abrigos que sobraram da Guerra Fria estão, na maior parte dos casos, fechados ou inutilizados. No entanto, ao final do dia de ontem, dia 24 de fevereiro, Nadiia tinha encontrado um onde conseguiu encontrar segurança.
Famílias com crianças foram, entretanto, autorizadas a usarem as escolas para se abrigarem, enquanto as pontes sobre o rio Dnieper, que une as duas margens da capital ucraniana, foram fechadas.
Enquanto isso, em Portugal, os ucranianos com familiares presos num país que teima em não conseguir renascer, apertam as mãos de aflição, tentam não ver muitas notícias e mantêm o contacto possível com os seus, num esforço derradeiro para aplacar os receios de um conflito que não queriam acreditar ser possível. Ou porque acreditaram que a Ucrânia já tinha tido a sua dose de sofrimento ou pura e simplesmente porque quiseram fazer fé num ditado que é tão usado lá quanto em Portugal: “A esperança é a última a morrer”.
Agora, como dizia Natalia, “é esperar pelas sanções e rezar. Pouco mais podemos fazer”, diz com um sorriso audível do outro lado do telefone, como que em jeito de desculpa pela impotência que a assola.