Temia-se o pior e o pior aconteceu, como atestam os bombardeamentos na Ucrânia, após o reconhecimento da independência de duas regiões separatistas do leste e apesar da ameaça de sanções que Vladimir Putin teria de enfrentar se avançasse para uma invasão do território.
A guerra estendeu-se à cobertura noticiosa, com várias vozes, sobretudo no Ocidente, a apontar baterias ao canal de notícias Russia Today (RT), que transmite notícias em inglês, árabe, espanhol e alemão. Entendem que o órgão de comunicação é um veículo de propaganda de Putin, devendo, por isso, ser policiado e, até, silenciado.
Classificado pelos Estados Unidos como “agente estrangeiro”, foi banido na Lituânia e na Letónia. Na Alemanha, o regulador de media alemão ZAK também o proibiu o RT, algo que o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, entendeu como “um ataque à liberdade de expressão” (embora a Constituição da Rússia garanta essa liberdade, nos últimos anos muito se tem escrito sobre o uso de sofisticados meios de vigilância e censura).
Seguiu-se a retaliação do governo de Putin, com o encerramento dos escritórios da emissora estatal alemã Deutsche Welle em Moscovo, sendo a primeira vez que um grande meio de comunicação ocidental foi banido na Rússia pós-soviética. Face à tensão crescente entre Moscovo e Berlim, a Ministra da Cultura alemã, Claudia Roth, afirmou que “é preciso dar passos claros para travar a escalada no relacionamento mútuo.”
No Reino Unido, o governo de Boris Johnson pediu ao regulador dos serviços de comunicação que intervenha caso o canal de notícias Russia Today esteja a difundir desinformação sobre a crise Rússia-Ucrânia. Segundo a Reuters, a Secretária de Estado da Cultura e dos Media, Nadine Dorries, enviou uma carta à Ofcom, o órgão regulador dos media britânico, pedindo que este tome medidas caso haja alguma tentativa de usar o RT para difundir desinformação sobre o conflito e minar a confiança das instituições ocidentais.
Por seu turno, a Ofcom fez saber a Dorries que estava atenta ao assunto, tendo intensificado a supervisão nas emissoras do Reino Unido como forma de garantir a ausência de propaganda unilateral. Do lado de Moscovo, Anna Belkina, vice-editora-chefe da RT, apontou o dedo ao comportamento do Reino Unido, alegando que o canal de notícias russo estava a ser alvo de pressões políticas, lembrando que, nos últimos quatro anos, o regulador não detetou qualquer violação do Código de Radiodifusão.
A ponta do ‘iceberg’
À superfície, pode parecer mais uma disputa entre órgãos de informação sobre a crise entre a Rússia e a Ucrânia mas, subjacente a ela, não são de excluir antigos fantasmas que remontam, pelo menos, ao colapso da União Soviética, há três décadas, e dos ventos da democracia ocidental.
No final do século XX, a expansão da NATO não foi vista com bons olhos pela Rússia. viram com agrado, no plano estratégico. Na ausência de uma ideia congregadora das Nações pós-soviéticas, perante as dificuldades de integração da política externa russa no modelo Ocidental e face à progressiva perda de influência da Europa no tabuleiro internacional, pode ter chegado a hora de virar a página e avançar para ‘destruição construtiva’, como lhe chamou o presidente honorário do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia, Sergey Karaganov.
Na prática, trata-se de desmantelar o papel dominante do Ocidente no sistema de segurança euro-atlântico atual, firmado após a Guerra Fria, e reorientar o foco, apostando na construção de uma Grande Eurásia, que inclui a China e a Índia, mantendo a diplomacia com a Europa. No artigo do RT pode ler-se que os acontecimentos na Crimeia, na Síria, a escalada militar e a expulsão do serviço público de quem alinhava com o Ocidente, a ascensão da China e o cimentar de laços com aquele País, contam uma história na qual se enquadra esta viragem.
Neste contexto, a expansão da NATO, e a hipótese de a Ucrânia vir a fazer parte dela, podem ser encaradas como um risco para a segurança da Rússia e que ela não parece estar disposta a correr, quando sonha vir a ser uma superpotência global. Mostra-o o ultimato que aos Estados Unidos e à NATO no final do ano, para parar o desenvolvimento de infraestruturas militares junto às fronteiras russas, numa tentativa de acabar com “as ‘regras’ unilaterais que o Ocidente vem tentando impor ao mundo nas últimas décadas”.
O desenho de uma nova ordem mundial, a ter lugar nos próximos anos, resultaria num sistema de segurança e de cooperação internacional assente nos princípios da ONU e no direito internacional, razão pela qual a pressão crescente – política, militar e psicológica – não se centra exclusivamente na Ucrânia. Ela dirige-se, sobretudo, às instituições do Ocidente, “cujas elites estão suficientemente desesperadas para iniciar uma nova guerra fria contra a Rússia”, forçando-as a mudar as regras do jogo. Como sublinhou Sergey Karaganov no RT, “se a Rússia tiver políticas razoáveis mas assertivas, vai superar com sucesso (e de forma relativamente pacífica) a última onda de hostilidade ocidental (…). Temos boas condições para vencer esta Guerra Fria.”