Aos 59 anos, Kamala Harris tem intenções de entrar na corrida à presidência dos Estados Unidos da América, depois da desistência de Joe Biden. O ainda atual líder da Casa Branca declarou o seu “apoio total e recomendação” à candidata, que se assume “honrada” por receber esta aprovação.
A filha de um casal de imigrantes (o pai economista jamaicano e a mãe oncologista indiana), apesar do seu nome pouco vulgar, tornou-se a primeira mulher, a primeira afro-americana e a primeira asiático-americana a tornar-se vice-presidente dos EUA. E, em novembro deste ano, se os eleitores permitirem, tem igualmente ao seu alcance a chefia do Partido Democrata e do Estado.
As origens, os heróis e o orgulho
Kamala é um dos grandes exemplos do melting pot norte-americano. A mãe, Shyamala Gopalan, oriunda de uma família de brâmanes (no topo do sistema de castas) do Sul da Índia, emigrou para os EUA com o intuito de fazer um doutoramento em Oncologia. O pai, Donald Harris, natural da Jamaica, tinha o mesmo objetivo mas em Economia. O casal conheceu-se na Universidade de Berkeley e ambos acabariam por se casarem contra a vontade das respetivas famílias. Os protestos pelos direitos civis e contra a Guerra do Vietname não os impediram de concluir os estudos, nem de levarem a filha mais velha num carrinho de bebé para estas manifestações – nas suas memórias, Kamala diz que ainda se recorda desses tempos, dos cânticos, dos gritos e, sobretudo, do mar de pernas à sua volta.
A benjamim da família, Maya, iria nascer em 1967, quando as carreiras profissionais dos progenitores já estavam lançadas. Só que o casal acabaria por se divorciar cinco anos mais tarde e as duas irmãs ficaram ao cuidado da investigadora especializada em cancro da mama que adorava o jazz de Thelonious Monk, John Coltrane e Miles Davis.
O tempo demonstrou que a cientista terá feito um bom trabalho. Kamala foi a primeira afro-americana a desempenhar os cargos de procuradora de São Francisco (2004-2011) e de procuradora-geral da Califórnia (2011-2017), a primeira indo-americana a ser eleita para o Senado dos EUA e a primeira não branca candidata à vice-presidência por um dos grandes partidos norte-americanos. Pelo meio, e após concluir o Ensino Secundário em Montreal, no Canadá – a mãe foi contratada pela Faculdade de Medicina da Universidade McGill –, Kamala quis ir estudar para um estabelecimento de ensino especial: a Howard University, em Washington D.C., fundada logo a seguir à Guerra da Secessão e em que a maioria dos alunos eram afro-americanos. Em 1986, com um canudo em Ciências Políticas e Economia, decidiu regressar à Califórnia e formar-se também em Direito, na Hastings College of the Law. Quatro anos mais tarde, era uma jurista profissional.
Na sua autobiografia lançada em 2019 – “As Verdades que Nos Sustentam: Uma Viagem Americana” (não traduzido para português) – Kamala Harris revela no prefácio como deve ser dito o seu nome: “Comma-la. Significa flor de lótus, um símbolo importante na cultura indiana. Nasce debaixo de água e a flor cresce à superfície, enquanto as raízes ficam agarradas ao fundo dos rios”.
Embora a autora não o refira, lótus é também uma das designações alternativas da deusa Lakshmi, cujos poderes podem transformar os sonhos em realidade. E, neste capítulo, as ambições de Kamala são bem claras, seguindo à risca as palavras de um dos seus heróis, Thurgood Marshall, o primeiro afro-americano a sentar-se no Supremo Tribunal dos EUA (falecido em 1993): “Não podemos fazer de avestruzes. A democracia jamais floresce num ambiente de medo. A liberdade não floresce num ambiente de ódio. A justiça não ganha raízes num ambiente de fúria. A América precisa de meter mãos à obra. Temos de lutar contra a indiferença, contra a apatia, contra a desconfiança”, disse em 2020.