A história nunca se repete, aprendemos a decorar, mas em França, sinceramente, há sempre coincidências que nos obrigam a repensar alguns conceitos e verdades absolutas. No país das contínuas mudanças de regime (já vai na quinta república em dois séculos), de muitas revoluções e de permanentes estados de revolta, tudo pode parecer imprevisível, mas tem também, tantas vezes, uma relação quase simétrica com o passado.
A derrota da extrema-direita na segunda volta das eleições legislativas francesas pode ter sido a recompensa que Emmanuel Macron esperava, quando decidiu fazer uma das jogadas mais arriscadas de sempre: dissolver o parlamento e convocar eleições antecipadas, após a vitória do partido de Marine Le Pen nas europeias. À partida, perante os primeiros resultados conhecidos, Macron conseguiu afastar o espetro da coabitação com um governo antidemocrático, que poderia ter consequências devastadoras para o equilíbrio da União Europeia e a defesa dos seus valores humanistas. Mas, no entanto, não conseguiu assegurar um final tranquilo para o final do seu segundo mandato como presidente.
Na frente da votação e, correspondentemente, com mais deputados eleitos, ficou a renovada Frente Popular, uma amálgama de partidos de esquerda, de que ninguém consegue prever quanto tempo durará a sua unidade – como ficou, de resto, bem demonstrado na forma como os líderes das várias organizações que a compõe se atropelaram em declarações de vitória, na noite das eleições.
A esquerda ganhou, mas ninguém sabe ainda como poderá formar governo. Da mesma forma, que o partido de Macron, mesmo ficando em segundo lugar, irá perder, naturalmente, o protagonismo e a centralidade que alcançou nos últimos anos, na política francesa.
A realidade é eloquente: não há uma maioria clara no governo, para qualquer partido ou coligação formar governo. E, segundo a Constituição francesa, Emmanuel Macron não pode voltar a convocar eleições no prazo de um ano.
Como se resolve o mais provável impasse que se aproxima? Só há uma forma: conseguir um entendimento entre várias forças políticas que permitam a formação de um governo que seja aprovado no parlamento. Até porque, mesmo que perante o chumbo de vários primeiros-ministros e dos seus executivos, se avance para um governo de tecnocratas, como sucedeu há bem poucos anos em Itália, será sempre necessário que a Assembleia Nacional dê a sua aprovação.
Se isso não acontecer, teremos, provavelmente, de recuar exatamente 100 anos para encontrar uma situação semelhante. O momento, em junho de 1924 em que Alexandre Millerand, o 11.º presidente da III República, se sentiu obrigado a renunciar ao cargo, depois de todos os chefes de governo que propôs terem sido chumbados no Parlamento.
Não sabemos se a história se repetirá, mas as coincidências entre Millerand e Macron são evidentes. Ambos vieram das fileiras socialistas e enveredaram, depois, por percursos próprios, mais à direita.
Macron enfrenta agora a vitória da Frente Popular, da mesma forma que Millerand ficou numa posição complicada perante a vitória do então chamado Cartel des Gauches (coligação de esquerda, que uniu os socialistas a outros movimentos radicais).
Finalmente, tanto em 1924 como em 2024, Paris é a sede dos Jogos Olímpicos. Há um século, nos últimos organizados pelo barão Pierre de Coubertin, o Presidente Millerand foi obrigado a abandonar o seu gabinete no Palácio do Eliseu poucas semanas antes da sua programada subida ao púlpito para proferir o discurso de inauguração – onde foi substituído pelo seu sucessor, Gaston Doumergue. No caso de Macron, a apenas duas semanas da cerimónia de abertura de Paris 2024, dificilmente a história olímpica será igual. Já em relação ao seu destino político, de curto e médio prazo, ninguém consegue assegurar o desfecho.
É verdade que aprendemos que, apesar das aparências, a história nunca se repete. Mas em França, sinceramente, nunca se sabe.