São quase 20 mil queixas de agressão, abuso e assédio sexual a pacientes em mais de 30 clínicas do serviço nacional de saúde britânico (NHS), em Inglaterra, especializadas em saúde mental, desde 2019. A situação foi exposta por uma investigação conjunta entre a Sky News e o The Independent e está a ser descrita como um “escândalo nacional”
A situação foi inicialmente exposta por Alexis Quinn, uma jovem que contou à Sky News ter fugido de uma instituição de cuidados psiquiátricos após ter sido agredida sexualmente por pacientes do sexo masculino. Quinn fez queixa, mas os alegados agressores saíram impunes.
Após a história de Alexis Quinn se ter tornado pública, outros pacientes e familiares de pacientes revelaram relatos semelhantes de agressão e abuso. “Achava que tinha sido apenas eu. Mas não, existem milhares de pessoas que passaram pelo mesmo que eu”, reagiu Quinn.
Os relatos de Alexis Quinn
Alexis Quinn foi internada em 2012, após a morte do irmão. Apesar de ser mulher, foi admitida numa enfermaria masculina do Hospital Littlebrook, em Kent, e sofreu a primeira agressão no dia de Natal de 2013, às mãos de outro paciente. “Tudo o que me lembro é de ouvir a respiração dele, de tudo ficar muito lento, de não me conseguir mexer e estar presa”.
No início de 2014, o hospital enviou uma carta à família a reconhecer que Quinn não deveria ter sido admitida naquela enfermaria e prometeu protegê-la. Foi transferida para o Hospital St Martin’s, em Kent, para uma enfermaria mista. Contudo, alguns meses depois apresentou nova queixa de agressão por ter sido agredida sexualmente por outro paciente do sexo masculino. Sobre esta situação, o hospital lamentou o sucedido e referiu que “os incidentes infelizes como este aconteciam devido à natureza aguda dos pacientes internados”.
Os alegados agressores não enfrentaram qualquer ação judicial por ter sido considerado que “não têm capacidade para passarem um uma investigação criminal”, explica a mãe de Alexis Quinn, Linda, apresentando a justificação que a família recebeu.
A Sky News falou com as instituições onde Alexis Quinn foi alegadamente agredida e ambas disseram ter erradicado as enfermarias mistas.
Relatos de outras pacientes
Depois de Alexis Quinn ter exposto a sua história, outras mulheres falaram com a Sky News para denunciar agressões que sofreram enquanto pacientes de unidades de saúde mental do NHS.
Rivkah Grant esteve numa clínica de saúde mental mista, diagnosticada com depressão. Admitida na enfermaria feminina do Hospital Chase Farm em 2016, denuncia os abusos que terá sofrido às mãos de um funcionário do sexo masculino. “Entrou no meu quarto à noite e ficou sozinho comigo, com a porta fechada. Pediu-me para prometer não contar nada a ninguém ou ele seria despedido. Eu senti-me muito mal e chorei o tempo todo”.
Rivkah denunciou o abuso e, mesmo assim, foi transferida para uma enfermaria mista. O seu agressor foi condenado em junho de 2017 após investigação policial. “Achava que estava num lugar seguro, mas aprendi que não há segurança em instituições de saúde mental. Sei que não sou a única pessoa que passou por isto”.
Stephanie Tutty foi admitida com 28 anos numa unidade de saúde mental de Essex em 2015, para superar traumas relacionados com uma violação que sofreu na juventude. Durante cinco meses de internamento sofreu alegados abusos sexuais repetidos às mãos de um funcionário do sexo masculino. Fez queixa e, em 2017, após dois anos de investigação foi informada pela polícia que o caso iria ser encerrado devido à baixa probabilidade de condenação.
“O que aconteceu vai ter um impacto duradouro em mim, ainda mais do que a primeira violação que sofri. Ele [agressor] é um predador”, afirma Stephanie Tutty.
Os dados da investigação
O Departamento de Saúde de Inglaterra comprometeu-se a erradicar os cuidados mistos em todos os internamentos em 2011. Contudo, a investigação da Sky News e do The Independent identificou diversas unidades do NHS onde isso ainda não aconteceu, 12 anos após o compromisso.
A investigação identificou quase 20 mil “incidentes de segurança sexual” – que incluem violações, agressão sexual, assédio, comentários de natureza sensual ou comportamento explícito, como nudez – em enfermarias de saúde mental em pacientes internados entre 2019 e 2023. O número de “incidentes” tem sido superior a cada ano que passa: em 2019 houve 2963 casos, em 2020 houve 3685, em 2021 houve 4226, e em 2022 houve 5103. Até ao momento, há apenas dados de 2023 até agosto, mas há se contabilizam 3912 casos denunciados. Das unidades de saúde apoiadas pelo governo inglês analisadas, apenas seis estão a aplicar as regras de proteção sexual vigentes.
A ex-comissária pelas vítimas em Inglaterra, Vera Baird, descreve este caso como um “escândalo nacional”. A presidente do Royal College de Psiquiatras, Lade Smith, também reagiu a esta investigação: “As descobertas horríveis mostram que há muito a fazer para garantir que pacientes e funcionários de clínicas de saúde mental sejam protegidos de danos sexuais”.
A reação do NHS e do governo
O NHS emitiu um comunicado após a divulgação da investigação. “Estamos a tomar medidas para garantir a segurança dos pacientes e dos funcionários, incluindo a implementação de melhores mecanismos de notificação, formação e apoio como parte da nova Carta de Segurança Sexual do NHS. O NHS de Inglaterra aconselhou todas as clínicas e sistemas de saúde locais a nomearem um líder de casos abuso doméstico e violência sexual para apoiar os pacientes e funcionários a relatar incidentes e ter acesso a apoio, com mais de 300 agora em vigor.”
Um porta-voz do Departamento de Saúde disse: “A violência sexual ou má conduta de qualquer tipo é inaceitável e não tem lugar no NHS, e as organizações do NHS têm a responsabilidade de proteger tanto os funcionários como os pacientes. Estamos a trabalhar em estreita colaboração com o NHS para garantir que qualquer pessoa que receba tratamento num estabelecimento de saúde mental receba cuidados seguros e de alta qualidade e seja tratada com dignidade e respeito”.