A história é quase sempre feita de ironias. O Congresso Mundial Judaico (CMJ), organização fundada em 1936 e que representa as comunidades e as organizações do povo judaico, em mais de uma centena de países, atribui anualmente o principal galardão – o prémio Theodor Herzl – a uma personalidade que se destaca no “apoio a Israel” e que contribui para um mundo mais tolerante. Eis como o CMJ descreveu o agraciado de 2020: “Ao ter testemunhado o sofrimento das pessoas mais vulneráveis do mundo, em zonas de guerra e em campos de refugiados (…), mostrou-se determinado a posicionar a dignidade humana no topo das suas prioridades, assumindo-se como um promotor de reformas, como um construtor de pontes e um mediador para a paz”. A figura em causa, António Guterres, após ser classificado como um “amigo verdadeiro” do país criado em 1948, é agora acusado por Israel e muitos judeus de ser um “traidor” da causa hebraica e um “antissemita descarado”, que deveria demitir-se do cargo de secretário-geral das Nações Unidas.

Na passada semana, Gilad Erdan, embaixador israelita na ONU, descontextualizou a inequívoca condenação dos atentados de 7 de outubro, feita pelo antigo primeiro-ministro português, e acusou-o de querer “justificar o terrorismo” e os massacres do Hamas. O facto de António Guterres ter afirmado que os ataques do grupo fundamentalista islâmico “não aconteceram do nada”, e ter sublinhado que os palestinianos estão sob uma “ocupação sufocante há 56 anos”, foi o quanto bastou para alimentar uma polémica sem fim à vista – e de nada adiantou ao secretário-geral da ONU se mostrar indignado, se sentir “mal interpretado” e emitir, a posteriori, um comunicado com a versão integral do que dissera. “[Os palestinianos] viram as suas terras serem continuamente devoradas por colonatos e assoladas por violência; a sua economia foi sufocada (…). As suas esperanças numa solução política para a situação têm vindo a desaparecer”, para depois concluir que “as queixas do povo palestiniano não podem justificar os terríveis ataques do Hamas”, tal como “esses ataques não podem justificar a punição coletiva do povo palestiniano”.