Uma das poucas rotas que passa pelas águas do Ártico, conhecida como Rota Marítima do Norte (RMN), é controlada pela Rússia. Apesar de não ser usada com tanta regularidade devido ao gelo que, durante a grande maioria do ano, cobre a superfície da região, a rota em questão detém a vantagem de ser mais rápida do que as suas alternativas, poupando tempo e energia. Apesar de a Rússia deter o seu controlo, à medida que o gelo derrete a possibilidade de mais trajetos afastados das águas russas se deixarem desenhar no mapa cresce e a situação geopolítica da região é colocada em questão.
A RMN estende-se desde o Mar de Kara ao Estreito de Bering, cobrindo uma vasta área da costa russa. Atualmente, o tráfego sentido no trajeto é, comparativamente a outras rotas, reduzido, sendo que no ano passado o transporte total do Ártico foi equivalente a apenas dois dias de tráfego no Canal Suez, de acordo com um artigo publicado na Nature. O futuro, no entanto, pode trazer uma realidade mais promissora para esta região a nível das rotas comerciais marítimas.
A rota em causa é atualmente controlada pela Rússia depois de uma decisão tomada na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar que dá aos países jurisdição sobre águas cobertas de gelo que se encontrem dentro de 200 milhas náuticas, ou 300 quilómetros, da sua costa, uma área também conhecida como zona económica exclusiva. No caso russo é exatamente isso que acontece: a proximidade da Rota do Mar do Norte à sua costa dá ao país controlo sobre essa região, o que inclui o controlo dos navios que passam nesse território assim como o pagamento de uma taxa. Agora, com o gelo a derreter e a linha da água do mar a subir, esses limites podem ser postos em causa.
À medida que as mudanças climáticas vão provocando um aumento na temperatura média global, aquecendo os oceanos e, consequentemente, levando ao desaparecimento do gelo nas regiões mais frias do planeta, algumas entidades têm vindo a questionar-se sobre as alterações que irá sofrer o Ártico, não apenas do ponto de vista do habitat natural e do equilíbrio do ecossistema, mas também do ponto de vista geopolítico.
Alguns modelos climáticos já têm vindo a procurar prever como será a paisagem do Ártico no futuro, alguns dos quais indicando que a região tem aquecido tão rapidamente que, em apenas duas décadas, algumas zonas não terão gelo durante vários meses seguidos, em oposição ao momento atual, em que não há gelo durante apenas dois meses em todo o ano. Um estudo publicado na revista Science anunciou que o Ártico está, inclusive, a aquecer quatro vezes mais rápido do que o resto do mundo.
Os benefícios de uma nova rota
Um outro estudo publicado em 2022 no Proceedings of the National Academy of Sciences, e que tinha em vista analisar o futuro das rotas no Ártico, anunciou que o desaparecimento de gelo na região não só pode afetar a regulamentação das rotas marítimas nas próximas décadas como, até 2065, aumentar a sua navegabilidade o suficiente para gerar novas rotas comerciais em águas internacionais.
Amanda Lynch, uma das principais autoras do estudo que investiga as mudanças climáticas no Ártico há quase 30 anos, trabalhou com Xueke Li, investigadora no Instituto Brown para Meio Ambiente e Sociedade, para criar quatro cenários de navegação com base em quatro resultados prováveis das ações globais para deter as mudanças climáticas nos próximos anos. As suas previsões mostraram que, caso os líderes globais não sejam capazes de impedir que o aquecimento global ultrapasse os 1,5 graus Celsius nos próximos 43 anos, as mudanças climáticas provavelmente abrirão várias novas rotas através das águas internacionais ainda em meados deste século.
Se o gelo derretesse além dos limites da Rota do Mar do Norte, isso criaria a possibilidade de se abrirem trajetos que se encontrassem além dos 300 quilómetros que definem a zona económica exclusiva da Rússia, dando a oportunidade a outros países, nomeadamente aqueles que fazem parte do Conselho do Ártico, um conselho composto por oito países – Canadá, Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Rússia – que “têm territórios dentro do Ártico e, portanto, desempenham o papel de administradores da região”, como explica o site oficial do conselho, de estabelecerem as suas próprias rotas comerciais e beneficiarem das potencialidades da região. Isto porque a rota atualmente controlada pela Rússia impõe muitas restrições à passagem de navios.
Além disso, e segundo o artigo 234 definido pelo Conselho Ártico, os países só podem controlar as regiões do Ártico a 300 quilómetros da costa se estas permanecerem geladas durante a maioria do ano. Se isso deixasse de acontecer, resultado das alterações climáticas, a Rússia poderia perder os seus privilégios. Do ponto de vista comercial, isto poderia ser interpretado como boas notícias, dado que uma rota menos controlada poderia aumentar o tráfego e entrega de bens que muitas vezes têm falhado comparativamente à demanda, mas definir quem controla o quê pode ser mais complexo.
As rotas do Ártico seriam especialmente benéficas devido à distância. De acordo com estudos anteriores citados por Lynch, as rotas do Ártico são entre 30% a 50% mais curtas do que as rotas do Canal de Suez e do Canal do Panamá, com um tempo de trânsito reduzido em cerca de 14 a 20 dias, um vantagem que, de acordo com a Reuters, o governo chinês, que já tem vindo a mostrar interesse na Rota do Mar do Norte, que é, inclusive, a rota marítima mais curta entre a Europa e a Ásia, também nomeou. Tal significa que, se as águas internacionais do Ártico aquecerem o suficiente para abrir novos trajetos, as companhias de navegação poderão reduzir as suas emissões de gases de efeito estufa em cerca de 24%, além de economizarem dinheiro e tempo.
Interesses em conflito
O interesse sobre a região tem aumentado tanto por parte da Rússia, que vê uma oportunidade para ganhar mais influência e força a nível comercial, colocando-se no centro de uma nova rota global de transporte que traria um conjunto vasto de benefícios ao país, como por parte de outros países, nomeadamente os EUA e a China. Os interesses, no entanto, podem colidir, nomeadamente entre os dois primeiros países.
As mudanças nas rotas do Ártico poderiam, de acordo com Charles Norchi, diretor do Center for Oceans and Coastal Law da Maine Law, investigador do Brown’s Watson Institute for International and Public Affairs e um dos coautores do estudo, alterar significativamente o panorama do comércio mundial.
De acordo com Norchi, a Rússia tem, até hoje, utilizado o artigo 234 em seu benefício, estipulando uma série de limites aos navios que desejam utilizar a Rota do Mar do Norte. As dificuldades impostas aos navios de outros países é uma das principais razões pelas quais as grandes companhias de navegação optam por outros trajetos como os canais de Suez e Panamá, que embora mais longos, são mais baratos e fáceis de aceder.
Ainda assim, estes canais têm também as suas próprias limitações, não apenas por serem rotas mais longas, mas por estarem sujeitos a incidentes como o sucedido no ano passado, quando um navio bloqueou a passagem do Canal de Suez durante quase uma semana inteira, impactando as rotas comerciais em grande escala. A Rússia pode, de acordo com o testemunho de Marc Lanteigne, professor associado de ciência política da Universidade do Ártico da Noruega, à CNBC News, usar isto para seu próprio proveito, promovendo a rota que controla e que está livre deste tipo de complicações. “Muitas autoridades russas são muito rápidas em perceber que as rotas marítimas do Ártico são potencialmente muito mais úteis para evitar o tipo de gargalo que se veria no Panamá ou no Canal de Suez”, explicou.
O que parece ser uma zona cinzenta em toda a questão das rotas do Ártico é exatamente o facto de o seu gelo estar a derreter e o artigo 234 estipular que a região, para ser controlada por um país, deve estar gelada a maioria do ano. Se as alterações climáticas derretem o gelo, quem controla o quê? Continua a Rota do Mar do Norte a ser de jurisdição russa? É na resposta a esta questão que a maioria dos interesses colidem.
De acordo com os EUA, a Rússia irá, à medida que o gelo derrete, perder os seus direitos de regular o tráfego através das águas, até porque, na eventualidade de aumentarem esse mesmo tráfego, um desejo que os russos esperam cumprir, estariam a pôr em causa o frágil ecossistema do Ártico. “Os russos, tenho certeza, continuarão a invocar o Artigo 234, que tentarão justificar com toda a sua força”, comentou Norchi. “Mas eles vão ser contestados pela comunidade internacional, porque o artigo 234 deixará de ser aplicável se não houver área coberta de gelo durante a maior parte do ano. Não apenas isso, mas com o degelo, o transporte marítimo sairá das águas territoriais russas e entrará em águas internacionais. Se isso acontecer, a Rússia não pode fazer muito, porque o resultado é impulsionado pelas mudanças climáticas e pela economia do transporte”, acrescentou.
A Rússia, apoiada pelos interesses chineses, não deixou de avançar, no entanto, com planos para aumentar o tráfego da região. De acordo com o The Wall Street Journal, o tráfego da rota tem vindo a aumentar de ano para ano: o tráfego de 2020 aumentou mais de 25% em relação a 2019 e mais 11% em 2021, números que o Presidente russo, Vladimir Putin, espera aumentar ainda mais, com planos para atingir uma carga de 80 milhões de toneladas até 2024, comparativamente aos 33 milhões registados em 2019.
Benefícios que nunca compensam os malefícios
A abertura de novas rotas comerciais seria um benefício no panorama mundial global tendo em conta a situação atual na qual a oferta falha muitas vezes a procura, realça Lynch lembrando, novamente, o incidente ocorrido no Canal de Suez. “Essas novas rotas potenciais do Ártico são uma coisa útil a considerar quando nos lembramos do momento em que o navio Ever Given ficou encalhado no Canal de Suez, bloqueando uma importante rota de navegação durante vários dias”, explicou. “A diversificação das rotas comerciais – especialmente considerando novas rotas que não podem ser bloqueadas, porque não são canais – dá à infraestrutura de transporte global muito mais resiliência.”
Ainda assim, os benefícios de uma nova rota comercial não compensam os malefícios que a acompanham. “Não há cenário em que o degelo no Ártico seja uma boa notícia”, sublinhou Lynch. “Mas a triste realidade é que o gelo já está a recuar, essas rotas estão a abrir-se e precisamos de começar a pensar criticamente sobre as implicações legais, ambientais e geopolíticas”, acrescentou.
Outras consequências incluem, como referido, o possível impacto negativo do aumento de tráfego no frágil ecossistema do Ártico, assim como as repercussões que teria para as comunidades nativas da região. “A ideia de que (a região do Ártico) poderá ser percorrida de maneira suave e relativamente segura, porque não há gelo, é muito assustadora”, admitiu à CNBC News Dalee Sambo Dorough, presidente internacional do Conselho Circumpolar Inuit, “uma importante organização não governamental internacional que representa aproximadamente 180 mil Inuit (membros da comunidade esquimó) do Alasca, Canadá, Groenlândia e Chukotka (Rússia)”, como explica o próprio site oficial. “O gelo do mar é crucial. É essencial ao nosso modo de vida. Por isso que podemos caracterizar as alterações climáticas como uma crise tão grande e central, uma força que já teve um impacto tão devastador nas nossas comunidades”, acrescentou.