Perante a crescente ameaça de escassez de água que se tem vindo a sentir, resultado do agravamento das alterações climáticas, muitos países têm procurado encontrar novas de formas de poupar os seus recursos hídricos. Em Singapura, a agência de águas e saneamento do país, Public Utilities Board, optou por uma abordagem diferente ao problema: além de poupar água, era necessário encontrar formas de reciclá-la. Foi com isto em mente que nasceu a NEWBrew, uma cerveja artesanal que se descreve como tendo um “sabor tostado, semelhante ao mel” e que resulta da reciclagem de águas residuais.
A constituição de qualquer cerveja conta com cerca de 95% de água, de modo que, em lugar a recorrer a reservas de água que, perante a situação atual, se provam extremamente valiosas, a nova cerveja promovida pela agência de água do país é produzida a partir de água residual reciclada que é sujeita a um tratamento rigoroso que a purifica.
Há já vários anos que Singapura se tem vindo destacar pela sua abordagem ao tratamento das águas e gestão de recursos hídricos, tendo a agência de águas do país recebido, em 2007, o Stockholm Industry Water Award, um prestigiado prémio entregue a indivíduos ou organizações que se destacam na área do saneamento. Singapura depende, atualmente, da importação de água da Malásia para responder à demanda da sua população. No entanto, o governo estabeleceu o objetivo de tornar o país autossuficiente a nível hídrico até 2061 através de projetos como a reciclagem de água, a dessanilização da água do mar e a recolha de água precipitada em reservatórios artificiais.
Além do seu uso na cerveja NEWBrew, a água reciclada dos esgotos, conhecida como NEWater, tem um conjunto vasto de outras finalidades, nomeadamente para o ar condicionado e fins industriais, sendo também, e em períodos de maior seca, adicionada aos reservatórios para, depois de um segundo tratamento, ser utilizada como água da torneira.
Singapura não é, no entanto, o único país a explorar as possibilidade ligadas à reutilização das águas residuais. À medida que as alterações climáticas se agravam e aumenta também o risco de secas, com o sudeste asiático a ser, inclusive, alvo de um alerta por parte do Painel Internacional para Mudanças Climáticas no que toca ao tópico da escassez de água, mais países tentam encontrar formas de contornar a problemática que se impõe.
O próprio uso de águas residuais na cerveja é uma iniciativa que já tem vindo a ser adotada por vários outros países como é o caso da Dinamarca. A sustentabilidade é, cada vez mais, uma preocupação junto dos governos e tanto as águas residuais como os próprios dejetos humanos são cada vez mais encarados não como um desperdício, mas como componentes importantes à criação de um ciclo de reaproveitamento.
Urina, uma arma contra as alterações climáticas?
Em vários locais do mundo a forma como a urina é tratada tem, aos poucos, vindo a ser alterada à medida que um conjunto cada vez mais vasto e aprofundado de pesquisas sobre os possíveis benefícios da sua reciclagem se vai formando. A urina é não só rica em água como também em vários tipos de nutrientes, nomeadamente o potássio, fósforo e nitrogénio, importantes na fertilização das terras e processos industriais.
Na Suécia tem vindo a ser desenvolvido um projeto que procura recolher urina humana com o intuito de secá-la através de um processo desenvolvido por uma equipa de investigadores da Universidade Sueca de Ciências Agrícolas para depois transformá-la em fertilizante. O fertilizante é depois fornecido a um agricultor local que o utiliza para cultivar cevada que, por sua vez, será transformada em cerveja. Cerveja essa que, embora não da mesma forma que a NEWBrew, tem a sua origem em urina humana. Após o seu consumo, essa mesma cerveja poderá novamente entrar no ciclo no formato de urina. Um ciclo de recilagem.
Esforços semelhantes de separar a urina dos restantes componentes do esgoto para que possa depois ser reciclada, seja em formato de fertilizante ou pela água que a constitui, têm sido sentidos por todo o mundo incluindo nos Estados Unidos, Austrália, Suíça, Etiópia, África do Sul, entre outros locais que se têm preocupado em contornar a problemática da escassez de água instalando, por exemplo, como é o caso de Paris, vasos sanitários capazes de separar a urina. A capital francesa tem planos para testar um sistema de saneamento alternativo que procura facilitar a reciclagem de toda a urina dos seus moradores. Os vasos sanitários irão ser colocados num bairro ecológico de cerca de mil habitantes que está já a ser construído na cidade.
Um estudo realizado nos EUA e citado pela revista Nature que comparou sistemas convencionais de águas residuais com sistemas hipotéticos que desviam a urina e recuperam o seus nutrientes e micronutrientes para o desenvolvimento de fertilizantes, estimou que os últimos seriam capazes de reduzir as suas emissões gerais de gases de efeito de estufa até 47%, o seu consumo de energia até 41% e o uso de água doce e a poluição por nutrientes de águas residuais até 50% e 64%, respetivamente.
Ainda assim, e apesar dos enormes benefícios que parecem acarrar, a reciclagem da água e urina humana continua a ser uma prática muito reduzida e diminuta quando comparada aos habituais sistemas de saneamento que se baseiam na deposição de todo os dejetos num mesmo local sem qualquer tipo de separação. Para que possam crescer em popularidade e alterar fundamentalmente o tratamento atual da urina e esgotos, este tipo de estruturas sanitárias terão ainda de ultrapassar alguns obstáculos, nomeadamente no que toca ao design dos vasos sanitários e ao próprio processo de tratamento da urina que terá de ser facilitado.
Algumas propostas que procuram evitar que seja necessário repensar toda a estrutura de saneamento das cidades, dado que isso constituiria, por si só, outro obstáculo, sugerem incluir sistemas de tratamento químico que se conectem diretamente a casas de banho individuais ou a edifícios inteiros, com serviços de recolha e manutenção do produto resultante.
Repensar os sistemas de saneamento implica uma mudança social
Além dos obstáculos referidos e mais do que uma questão de design, a reutilização da água e urina humana é uma questão social que implica uma “reimaginação drástica de como fazemos o saneamento humano”, explica, em resposta à Nature, a bióloga Lynn Broaddus, consultora de sustentabilidade e ex-presidente da Water Environment Federation Virgínia, uma associação de profissionais de qualidade da água.
Na África do Sul, e como relata o mesmo órgão de comunicação, foram implementados em 2000 cerca de 80 mil vasos sanitários com separação de urina como parte de um esforço para construir estruturas sanitárias em alguns dos locais mais pobres do país. Este tipo de saneamento foi na época instalado pelo seu baixo custo desviando a urina para o solo e as fezes para um cofre. As condições do sistema não foram, no entanto, as ideais e, além de terem sido utilizados materiais incapazes de controlar os odores, a própria sanita provou-se difícil de utilizar, como relatam estudos que contaram com a colaboração de habitantes da região.
Uma outra investigação concluiu que a grande maioria da população preferia ter um sistema tradicional de descarga semelhante àqueles existentes nas zonas mais ricas do país. Assim, e embora tal não fosse o objetivo, as instalações de saneamento de separação da urina contribuíram para uma separação ente as classes de rendimento médio e alto e as classes de rendimento baixo, tornando-se, inclusive um símbolo de disparidade social.
Atualmente, novos designs que asseguram que o odor ou a dificuldade de utilização do vaso sanitário não são obstáculos já estão a ser desenvolvidos, mas deve sempre colocar-se “essa lente racial”, explica Anthony Odili, investigador na área da organização de saneamento na Universidade de KwaZulu-Natal, em Durban, sendo importante que o novo saneamento seja “adotado e aceite em áreas de alta renda”.
Além da igualdade, é necessário moldar também as mentalidades de várias sociedades no que toca à urina humana, ao saneamento e às alterações climáticas. Estarão as pessoas dispostas a comer alimentos fertilizados por componentes reciclados da urina? Perante a questão, e em países como a França, a China ou o Uganda a disposição para fazê-lo aproximou-se dos 80%, tendo a disposição média global ultrapassado os 50%, indicando que mais de metade da população estará disposta a consumir alimentos fertilizados a partir de componentes da urina.
Talvez seja uma questão de hábito, primeiro estranha-se, depois entranha-se. No caso da cerveja NEWBrew, que já está disponível em Singapura, parece ter sido esse o caso até porque, e de acordo com um consumidor que já teria provado o produto, a cerveja “definitivamente desce bem”, segundo o testemunho dado ao The Independent. “Eu podia provavelmente, se quisesse, beber bastantes destas”, acrescentou.