Amelia Cline chegou mesmo a apelidar de “abuso infantil” o que faziam com ela e com outras colegas. Os seus relatos, agora conhecidos, são similares aos de outras ginastas, que afirmam que os abusos e os assédios são uma constante.
Não conseguindo ficar calada perante tais crimes, agora, a ginasta canadiana é a representante de uma ação coletiva que foi movida contra a Gymnastics Canada, o organismo responsável pela modalidade no país, e mais seis órgãos governamentais.
Abuso na primeira pessoa
“Eu era uma menina destemida”, começa por contar Amelia Cline à CNN. Aos dois anos de idade começou a mostrar os primeiros sinais daquilo que poderia ter sido o seu futuro, a fazer elevações na bancada da cozinha.
“Todas as criança gostam de aprender a fazer flic-flacs e todas as minhas primeiras lembranças são muito felizes e cheias de alegria, tal como deveriam ser”, relembra a ginasta. Rapidamente passou das competições locais para as elites, apenas com 10 anos. Sentia-se bem, capaz e “o amor pelo desporto continuava”. Tudo mudou quando Vladimir Lashin e a mulher, Svetlana, se tornaram membros da equipa técnica.
“Imediatamente se tornou verbalmente abusivo”, conta a ginasta, hoje com 32 anos. “Se alguma de nós cometesse algum erro, eles começavam a gritar e humilhar. ‘Isto é um lixo, tu és lixo'”. Do verbal, rapidamente passou para o físico.
Cline relembra que, num dos treinos, estava a aquecer e o seu tendão estava muito rígido. “Ele ficou muito irritado. Ele disse algo como ‘Está apenas a fingir’ e foi então que ele agarrou na minha perna e a forçou para trás da minha orelha”, testemunha. A ginasta ainda se consegue lembrar perfeitamente do grito que deu e das dores que sentiu. Na altura, este movimento fez com que o seu tendão se rasgasse.
Quando Cline se queixou, o treinador não mostrou arrependimento ou responsabilidade pela lesão. “Não houve nenhum tipo de tentativa de tratamento médico, ninguém ligou para meus pais. Lembro-me que acabei por ter que ir a coxear até ao balneário e chamar os meus pais para me levarem ao hospital”, declara.
Este não foi caso único: da sua adolescência, a antiga ginasta relembra uma imensa carga horária e as lesões dolorosas pelas quais passou. Cline conta que partiu a mão em três lugares distintos e que rasgou um músculo na coluna, o que resultou num “coágulo do tamanho de uma bola de baseball”.
Além das 30 horas por semana que passava no ginásio, Cline narra que, para que os seus joelhos não parecessem ceder na receção no solo, o que equivale a uma redução de pontos em competição, Vladimir Lashin forçava a sua hiper-extensão, sentando-se em cima deles com a ginasta apenas com os pés apoiados numa caixa. Cline diz que ele pesava cerca de 90 quilos.
O processo
Amelia Cline é agora uma da vozes da revolta contra os abusos na ginástica e, por isso, é a cara de uma ação em tribunal contra a Gymnastics Canada e mais seis órgãos governamentais. Tanto Vladimir quanto Svetlana Lashin são nomeados nas alegações do processo, que detalha um “quase diário…abuso físico …ligado a uma cultura de abuso psicológico” e “contacto físico inapropriado”.
O processo também descreve que “em vez de enfrentar uma punição por sua conduta abusiva, Vladimir e Svetlana foram recompensados tanto pela Gymnastics BC quanto pela Gymnastics Canada”. A verdade é que, de acordo com o processo, Vladimir foi nomeado treinador da equipa do Canadá nas Olimpíadas de 2004, em Atenas, e depois promovido a Treinador Nacional de Ginástica Artística Feminina em 2009.
De acordo com o processo, várias ginastas apresentaram queixas “durante décadas”, alegando “abuso sexual, físico e psicológico e cumplicidade institucional que permitiu que a cultura de maus-tratos persistisse”.
Ainda numa fase inicial, o processo pode aumentar, tanto em testemunhos como em acusados, e pode demorar anos até ser concluído. “Precisamos mesmo que estas instituições sejam responsabilizadas pelo abuso sistémico que permitiram durante décadas”, defende Cline, acrescentando que a mensagem que estão a tentar fazer passar é de que ninguém pode continuar com este comportamento e não ser punido. O caso também prevê que se compense as atletas pelos danos causados.
A Gymnastics Canada já reagiu em comunicado: “Embora estejamos tristes ao saber que dezenas de atletas sentem que falhámos ao resolver esses problemas, estamos comprometidos em continuar a educar e defender reformas em todo o sistema que ajudarão a garantir que todos os participantes se sintam respeitados, incluídos e seguros ao treinar e competir pelo desporto.”