Entre o 24 de fevereiro e 11 de marços últimos, várias testemunhas afirmaram perante a Comissão de Verdade, Reconciliação e Reparação da Gâmbia (TRRC, na sigla em inglês) que migrantes com destino à Europa provenientes do Congo, Costa do Marfim, Gana, Libéria, Nigéria, Senegal, Serra Leoa e Togo, e o contato destes na Gâmbia, foram detidos por agentes sob as ordens de Jammeh e depois assassinados pelos “Junglers”, uma conhecida unidade paramilitar, que recebeu ordens diretas do antigo presidente, sublinha a organização de defesa dos direitos humanos num comunicado divulgado hoje.
“Testemunhas bem colocadas implicaram Yahya Jammeh no assassinato de cidadãos de nove países da África Ocidental”, afirma Reed Brody, conselheiro da Human Rights Watch, citado no comunicado a que a Lusa teve acesso.
“Todos esses países devem apoiar uma investigação criminal e, se tal se justificar, a acusação de Jammeh e de outros com responsabilidades no massacre dos migrantes e em outros crimes graves cometidos pelo seu governo”, defende o mesmo ativista.
Várias testemunhas, incluindo o antigo chefe do pessoal do Ministério da Defesa e antigos oficiais superiores da Agência Nacional de Inteligência da Gâmbia (NIA), relataram que o então comandante chefe da polícia, Ousman Sonko – que está atualmente sob investigação na Suíça, por acusação de crimes contra a humanidade -, informou Jammeh durante uma cerimónia nacional em 22 de julho de 2005, que um grande grupo tinha sido detido numa praia perto da Barra, do outro lado do rio que desagua em Banjul, a capital do país.
Depois de alegadamente ter falado com Yahya Jammeh, Sonko instruiu oficiais subordinados para transportarem os migrantes, suspeitos de serem mercenários, para o quartel-general naval em Banjul.
Os chefes dos serviços de segurança da Gâmbia – da polícia, exército, marinha, NIA, e guarda nacional – convergiram então para o quartel-general naval, tal como vários Junglers, que espancaram e pontapearam os migrantes, tratando-os, segundo o testemunho de um oficial, “como animais”.
Vários oficiais alegaram ser claro que os homens detidos e duas mulheres eram migrantes e não mercenários, uma vez que não transportavam armas ou qualquer objetos suspeitos. Os migrantes foram então distribuídos por vários centros de detenção em Banjul e arredores.
Os corpos expostos de um primeiro grupo de oito migrantes foram encontrados na manhã seguinte à cerimónia, 23 de julho de 2005, perto da “Cidade do Gana”, uma colónia de descendentes de ganeses em Brufut, à saída de Banjul.
Pa Amady Jallow, então coordenador da gestão de crimes na polícia gambiana, testemunhou que os corpos mostravam sinais de maus tratos, havia crânios partidos, a verter massa encefálica e sangue. Jallow revelou que quando comunicou esta informação ao seu superior, Ousman Sonko, este manifestou não estar interessado, e desligou por três vezes o telefone.
Em seguida, um delegado de Sonko informou Jallow de que tinha acabado de ser transferido para o serviço de trânsito.
Jallow disse à TRRC que a sua ofensa foi “tentar investigar um crime hediondo e bárbaro perpetrado … em nome … do presidente”. Disse também ter sido informado anos mais tarde por outro agente da polícia que mais nove nigerianos tinham sido enterrados numa vala comum perto do local onde Jallow viu os corpos expostos. A comissão disse que pretende revistar o local.
Ismaila Jagne, um líder comunitário da Cidade do Gana, testemunhou que dois ganeses que procuraram refúgio no local em 23 de julho explicaram que tinham sido transportados para as proximidades, com outros oito, por soldados de uniforme preto (tal como usado pelos Junglers), mas que conseguiram escapar. Jagne conduziu os dois ganeses à polícia em Brufut para a sua segurança. Quando voltou para lhes levar comida, os agentes da polícia disseram-lhe que os dois homens tinham sido levados.
Uma delegação do Governo do Gana, liderada pelo então ministro das Relações Exteriores e atual Presidente, Nana Addo Dankwa Akufo-Addo, relatou que os registos de Brufut mostraram que os homens foram transferidos em 24 de julho para a sede da polícia. Os dois homens, identificados como Bright Antwi e John Kweku, estão entre os desaparecidos.
Alguns dias mais tarde, os restantes migrantes ainda detidos, entre 40 e 45, foram levados em veículos e executados no Senegal, no outro lado da fronteira da Gâmbia, junto à cidade natal de Jammeh, Kanilai.
Numa sessão da TRRC em julho de 2019, três antigos Junglers, todos membros do Exército Nacional da Gâmbia, testemunharam que eles e outros 12 Junglers – que identificaram — levaram a cabo esses assassinatos por ordem de Yahya Jammeh. Um dos oficiais, Omar Jallow, recordou que o líder da operação deixou claro que “a ordem de … Jammeh é que todos deviam ser executados”.
Os elementos dos Junglers e outras testemunhas testemunharam que a unidade paramilitar estava sob o controlo direto de Yahya Jammeh, e identificaram uma série de assassinatos levados a cabo sob as ordens do antigo presidenter.
Nos termos de um antigo Jungler, Alieu Jeng, os Junglers “nunca operaram sobre nada que fosse da sua própria iniciativa, ordem ou vontade. Todas as ordens vinham do topo [Jammeh]”.
O ex-ministro do Interior, Baboucarr Jatta, aceitou a afirmação da TRRC, de que as mortes resultaram de uma “execução ordenada pelo Estado” e foram levadas a cabo “por soldados da Casa do Estado [residência de Jammeh]”. Jatta disse ainda acreditar que os soldados agiram sob as ordens de Jammeh.
O número exato de migrantes mortos não é ainda claro. Gibril Ngorr Secka, diretor de operações da NIA, apresentou à TRRC uma lista de 51 migrantes, que a polícia identificou numa esquadra, incluindo nacionais do Gana (39), Serra Leoa (3), Costa do Marfim (2), Senegal (2), Togo (2), Libéria (1), Nigéria (1), e Congo (1).
Ainda que o número omita, alguns migrantes previamente identificados, bem como, pelo menos oito outros nigerianos, que se crê terem sido detidos e mortos, esta foi a primeira lista oficial dos migrantes mortos a ser revelada.
APL // PJA