No dia 16 de outubro, França entrou em choque com o homicídio de Samuel Paty, um professor do ensino secundário que lecionava as disciplinas de História e Geografia. Numa aula sobre a liberdade de expressão, Paty decidiu mostrar algumas caricaturas do profeta Maomé – e acabou por ser decapitado por causa disso, após sucessivas ameaças de morte por alegadas ofensas religiosas. O acontecimento gerou um debate que já é conhecido há vários anos em França, em particular depois dos atos de terrorismo na sala de espetáculos Bataclan ou na redação do jornal Charlie Hebdo: o debate da tolerância religiosa e dos seus limites, em particular relativamente ao islamismo radical.
Poucos dias depois do homicídio, numa cerimónia em honra do professor, Emmanuel Macron, Presidente de França, afirmou que “Samuel Paty foi morto porque os islamistas querem o nosso futuro e sabem que com heróis silenciosos como ele nunca o terão.” A par destas palavras, Macron reivindicou os ideias de laicismo, liberdade de ensino e humanismo do seu país. Estavam lançados os dados para uma nova campanha de combate ao “separatismo islâmico” – a ideia de que os islâmicos radicais estão a criar comunidades onde propagam ideias que os separam dos valores da República Francesa.
Ao longo das últimas quatro semanas, outros dois homicídios motivados por radicalismo islâmico acrescentaram-se ao de Samuel Paty. Perante esta conjuntura, o Governo apresentou ao Parlamento Francês uma lei para combater o “fundamentalismo religioso” – lei essa que foi simbolicamente apresentada a 9 de dezembro, no 115º aniversário da Lei Francesa que impõe a separação do Estado e da Igreja. No entanto, a proposta de Macron não é consensual – os críticos consideram-na um ataque a toda a religião muçulmana e não apenas ao radicalismo islâmico.
“Não é uma lei contra o islamismo, mas uma lei de emancipação contra o fundamentalismo religioso”
Foi com estas palavras que Jean Castex, primeiro-ministro francês, defendeu o diploma apresentado pelo seu executivo. Com o objetivo de “defender o laicismo e a igualdade de género”, as disposições desta lei incluem medidas como fortes restrições ao ensino em casa: os pais passam a ter de pedir autorizações e justificar a razão pela qual os seus filhos não vão à escola. O objetivo, de acordo com o Governo, é impedir que as crianças fiquem sujeitas ao ensino radical islâmico em casa, como acontece em vários bairros de França.
Por outro lado, a lei também inclui cláusulas que facilitam a inspeção por parte do Governo de locais de culto e associações que recebem financiamento público. No caso de estes não respeitarem “princípios republicanos” como a igualdade de género, o executivo passa a ter poderes para os encerrar. A par desta medida, acrescentam-se a extensão da proibição de uso de símbolos religiosos como o véu islâmico ou o crucifixo em locais subcontratados por entidades públicas (neste momento, já é proibido em instituições públicas), assim como a proibição de os médicos passaram “certificados de virgindade” – de forma a proteger as mulheres de pressão pré-nupcial.
Em sua defesa, o Governo afirmou que são necessárias medidas fortes para combater “sociedades do contra.” De acordo com o executivo, as associações influenciadas pelo islamismo radical têm crescido ao longo dos últimos anos através da criação de sociedades paralelas – em locais que variam desde creches a centros de prática desportiva. Estes locais acabam por ser focos de recrutamento para jihadistas, disse Gilles Kepel à Economist, e que podem resultar em islamofobia e na divisão das sociedades ocidentais.
Uma lei anti-islâmica?
As palavras “islamismo” e “separatismo” não podem ser encontradas no diploma – o que se traduz numa possível tentativa do Governo evitar criticismo por se tratar de uma lei dirigida a muçulmanos. No entanto, numa entrevista ao Le Monde, Jean Castex apenas citou exemplos relacionados com o islamismo: desde casos de “crianças que se recusam a brincar com não-muçulmanos” a outras que “recitam suratas do Alcorão enquanto tapam os ouvidos nas aulas de música.” Assim, apesar de o Governo insistir que a lei não é dirigida a muçulmanos, a perceção pública dita o contrário.
Por outro lado, a lei também pode ter efeitos contrários ao seu propósito. Obrigar os pais a pedirem autorização para os filhos acederem ao ensino em casa pode causar um efeito perverso: de acordo com estimativas de funcionários franceses, cerca de 5 mil dos 62 mil alunos que estudam em casa podem acabar a ser inseridos em estruturas de ensino marginais, que não respeitam o currículo escolar do país. Por sua vez, a proibição de estruturas religiosas receberem doações superiores a 10 mil euros vindas do estrangeiro – uma medida feita a pensar no dinheiro vindo de estruturas islâmicas radicais de outros países – pode acabar a afetar outras pequenas associações religiosas, como igrejas evangélicas que recebem financiamento dos EUA.
Por fim, a lei ainda enfrenta um último obstáculo: a falta de números. O Governo não disponibilizou quaisquer dados para provar a importância de resolver os problemas enunciados, tais como o número dos testes de virgindade levados a cabo em França, as estatísticas de casamentos forçados ou a quantificação do número de crianças jovens que são obrigadas a usar o véu islâmico, de forma a compreender melhor qual seria o alcance das medidas.
Perante toda esta polémica, resta aguardar pelo debate no Parlamento francês, onde a lei terá de ser aprovada para ser posta em prática. A discussão – que promete ser acesa – terá lugar no início de 2021.