Sabia que Michelle Obama, a ex-primeira-dama dos EUA, é um homem? E que George Soros, um dos homens mais ricos do mundo, é um “nazi” que financia uma rede pedófila internacional, de que se aproveitam personalidades como Tom Hanks e a maioria dos artistas de Hollywood? E que a família Rothschild é uma máquina de corrupção que controla vários governos, graças aos seus capachos políticos, como Emmanuel Macron, o Presidente francês? E que a futura vacina contra a Covid-19 pretende reduzir a fertilidade das mulheres e tornar as crianças autistas, de acordo com o plano de Bill Gates para instalar microchips em boa parte da espécie humana? Se respondeu afirmativamente a estas questões, existe uma forte probabilidade de precisar de auxílio clínico ou de ser simpatizante do QAnon, o mais mediático movimento conspiracionista da atualidade.
A 27 de agosto, uma prestigiada publicação científica, o Journal of Personality, publicou um relatório em que se conclui que perto de 40% da população dos Estados Unidos da América tende a acreditar em rumores e conjuras. Se tivermos em conta que o país tem 330 milhões de habitantes, há uma probabilidade muito séria de o QAnon vir a contar com 132 milhões de seguidores – número que equivale quase ao dobro do total de militantes do Partido Republicano e do Partido Democrata, as duas principais formações políticas do estado proclamado por Thomas Jefferson e George Washington, em 1776.
Para se perceber a importância deste fenómeno, é preciso recuar a 28 de outubro de 2017, quando um fórum digital, o 4chan, publicou uma mensagem de alguém que se identificava como “Q Clearence Patriot”. Numa linguagem críptica, o indivíduo (ou grupo) em causa escreveu: “Extradição de HRC [Hillary Rodham Clinton] em curso desde ontem, com vários países a colocarem as suas fronteiras em alerta (…). Esperam-se grandes motins, organizados como desafio a essa decisão e com muitos outros a fugirem dos EUA. O Serviço de Delegados de Polícia [U.S. Marshals] vai conduzir a operação e a Guarda Nacional está mobilizada.” Escusado será dizer que a antiga secretária de Estado de Barack Obama nunca andou a fugir das autoridades e ninguém a tentou deter por qualquer crime. Mas o aviso estava feito, porque ela é uma das figuras mais polarizadoras da sociedade norte-americana, um suposto símbolo da arrogância das elites e do poder corrupto de Washington D.C.. Ainda por cima, já tinha antecedentes enquanto alvo de teorias conspirativas. No primeiro domingo de dezembro de 2016, um mês depois da vitória de Donald Trump para a Casa Branca, um estranho incidente marcou a capital dos EUA: uma pizaria frequentada por dirigentes do Partido Democrata, a Comet Ping Pong, é encerrada à força por um indivíduo armado que pretendia fazer justiça e desmantelar uma rede pedófila que usaria as instalações como sede. Entre os cérebros dessa imaginária organização criminal estaria Hillary Clinton. O caso, conhecido como Pizzagate, resolveu-se de forma pacífica e Edgar Maddison Welch, o autor do ataque, reconheceu que foi enganado, sendo depois condenado a quatro anos de prisão.
Voltemos ao outono de 2017 e às mensagens de Q na internet, quando este último passa dos alertas sobre Hillary Clinton a avisos ainda mais bombásticos. Talvez em busca de novas audiências, ele alega – partindo do pressuposto de que se trata de um homem – ter informações privilegiadas sobre um complô contra Donald Trump e também sobre as circunstâncias do homicídio do ex-Presidente John Fitzgerald Kennedy. A estratégia surte efeito e multiplicam-se os apelos para a formação de um “exército” de patriotas dispostos a lutar contra o “pedófilo-satânico estado profundo” (ver glossário). Mobilizam-se os primeiros candidatos para o “grande despertar”, corolário da “tempestade” e da megaoperação para neutralizar a “cabala” e todos os criminosos como Soros, Gates, os Clinton, os Obama – a lista parece não ter fim e aumenta a cada dia que passa.
Conhecedor destas manobras através da internet, o FBI investigou o que estava a acontecer e, a 30 de maio do ano passado, divulgou um relatório em que considera o QAnon, e respetivos grupos de seguidores associados, como uma “ameaça de terrorismo doméstico”. No entanto, dadas as dificuldades de relacionamento das forças de segurança e dos serviços de informações com a Administração Trump, pouco ou nada foi feito para minimizar os riscos.
Volvidos três anos desde a sua formação, a nebulosa conspiracionista dispõe agora de milhões de fiéis nos EUA e em muitos outros pontos do globo. “É um movimento de massas que rejeita qualquer racionalidade e os valores do Iluminismo. E provavelmente estamos muito mais perto do início da sua história do que do seu fim. O grupo entrelaça com todo o fervor paranoia e esperança, a que se junta o sentimento de pertença. A maneira como dá vida à eterna inquietação com o fim dos tempos também é radicalmente nova. Olhar para QAnon é ver não apenas uma teoria da conspiração, mas o nascimento de uma nova religião”, escreveu na revista Atlantic, em junho, Adrienne LaFrance. Ethan Zuckerman, professor na Universidade de Massachusetts e grande estudioso das redes sociais, considera igualmente possível que a popularidade destes grupos cada vez mais radicais e violentos aumente de forma exponencial: “O que dá força ao QAnon é a desconfiança em relação às instituições e às elites. É um sentimento muito poderoso, nos EUA como nos outros países do Ocidente.” Segundo este investigador, as estatísticas refletem esta tendência: “Em 1964, 77% dos americanos diziam confiar no Governo (…); quando Barack Obama se tornou Presidente, não eram mais de 30 por cento.” E, na entrevista recente que concedeu ao diário Le Monde, diz que é irrelevante conhecer-se a identidade de Q ou o facto de Donald Trump ser descrito pelos conspiracionistas como o “Salvador”: “Trump joga um papel à parte, Q está encarregado de transmitir as revelações, mas o sacerdote é cada um dos seguidores! É o oposto do que se passa na Igreja da Cientologia. De certa forma, é um movimento meritocrático e um jogo. Se a interpretação dos seus vaticínios for melhor do que a dos outros, pode ser recompensado com mais atenção e até com dinheiro. É uma seita à moda de 2020 – cada um pode ser simultaneamente um influencer Instagram e um coautor de teorias da conspiração.”
O resultado está à vista. Antes da pandemia, apenas 3% dos norte-americanos dizia conhecer o QAnon ou concordar com as suas teses; agora, de acordo com o Pew Research Center, são 47 por cento. Mas não só. O movimento alastrou do Irão à Nova Zelândia, passando pela Roménia, à custa da pandemia e dos grupos que se opõem às quarentenas e às vacinas. Só na Alemanha, conta com perto de 200 mil seguidores, inspirados em sites como o Querdenken 711 ou figuras polémicas como o virologista Wolfgang Wodarg. Não é, pois, de estranhar que as grandes plataformas tecnológicas se tenham visto obrigadas a reagir. No último trimestre, Facebook, YouTube e Twitter terão eliminado mais de 30 milhões de contas e de canais conotados com o QAnon. No entanto, esse pode ser um esforço inglório. Nos EUA, os média têm informado que o Partido Republicano está a ser tomado de assalto pelos conspiracionistas que apoiam Trump. Nas eleições gerais de 3 de novembro, estima-se que mais de quatro dezenas de candidatos sejam militantes ou simpatizantes de Q, tal como aconteceu há pouco mais de uma década com os ultraconservadores do Tea Party. E é inevitável que alguns passem a sentar-se no Congresso. Marjorie Taylor Greene, do Oregon, e Lauren Boebert, do Colorado, ambas racistas, pró-armas e defensoras da ação direta contra socialistas e demais adversários, prometem um “grande despertar”. Verdade, propaganda ou ficção?
Glossário
Principais conceitos e expressões do universo QAnon
Q
Letra que simboliza o fundador ou a entidade suprema do movimento, supostamente alguém muito bem colocado no aparelho de Estado e com acesso a informação privilegiada.
QAnon
O nome oficial do movimento que resulta da contração de Q e de Anonymous (abreviado para Anon), devido ao anonimato da liderança.
Deep State
Entidade mais ou menos abstrata a que Trump se refere muitas vezes. O Estado Profundo é responsável por todos os males do mundo e o grande inimigo do 45º Presidente dos EUA.
The calm before the storm
Uma das principais expressões usadas por Q (“A calma antes da tempestade”) para descrever a purga de que os EUA e o mundo precisam para destruir a cabala montada pelas elites.
WWG1WGA
Acrónimo usado pelos apoiantes QAnon que significa “Where We Go One We Go All”, uma adaptação da expressão latina E Pluribus Unum que é também lema nacional dos EUA.
Save our Children
Frase que significa “Salvem os nossos filhos”, uma alusão ao rumor de que, todos os anos, nos EUA, milhares de crianças são sexualmente escravizadas pelas elites.
Heidi Larson
Caçadora de conspirações
É uma cientista social que se considera uma gestora de rumores, sobretudo os que pretendem negar ou desvalorizar os efeitos das vacinas − como sucede com a generalidade dos seguidores do QAnon. Já trabalhou para a UNICEF e para ONGs como a Save The Children, mas agora é investigadora no Instituto de Higiene e Medicina Tropical de Londres. Não se conforma com o facto de que um terço da população dos EUA e do Reino Unido diga não querer ser vacinado contra a Covid-19.
Marjorie Greene
Estrela ameaçadora
Só uma tragédia impedirá esta empresária de ganhar o 14º distrito eleitoral da Geórgia, a 3 de novembro, e de vir a ocupar um lugar na Câmara de Representantes. Para Donald Trump, esta apoiante das teses QAnon é uma “futura estrela” do Partido Republicano. No início do mês passado, nas suas redes sociais, ela publicou uma fotomontagem em que aparece, com uma arma automática, ao lado de Alexandria Ocasio-Cortez e duas outras congressistas democratas. Legenda: “Tempo de passar à ofensiva.”