Desde finais de setembro que o distrito de Macomia tem estado debaixo de fogo, com vários ataques a destruir cidades, a decapitar cidadãos e a perpetuar o rasto de destruição que desde outubro de 2017 tem sido deixado na região de Cabo Delgado.
Os habitantes daquela zona não têm encontrado outra solução que não a fuga para territórios mais seguros, mesmo que isso signifique abandonarem o lugar onde têm as suas casas, os seus poucos pertences – Cabo Delgado é uma das regiões mais pobres do País – e as suas machambas, que geralmente lhes garantem a subsistência. Entre o passado sábado, 17 de outubro, e o dia de ontem, 20 de outubro, cerca de três mil pessoas terão desembarcado na praia de Paquiquete, em Pemba. Idosos, mulheres e crianças, sobretudo, chegam em barcos sobrelotados, que estão novamente a fazer a viagem de volta para tentar salvar mais pessoas que estão em risco no norte do País.
“Hoje (terça-feira) foi um dia difícil. Desde sábado que estão a chegar cada vez mais pessoas”, contou à VISÃO Ruy Santos, da plataforma Makobo, uma ONG moçambicana que tem estado a tentar apoiar os deslocados. “É perfeitamente lamentável, porque são deslocadas internos e não há nenhum tipo de apoio à espera delas. Vemos pessoas a chegar como zombies…Pessoas que chegam sem saber o que as espera”, lamenta.
Numa conversa telefónica entre Lisboa e Pemba, Ruy contava à VISÃO o fecho do dia dos voluntários que estão na praia à espera dos deslocados: “Ainda agora estávamos a fazer o fecho do dia e cada um estava a tentar descrever a imagem que tinha dos acontecimentos. E parece que estamos mesmo num filme dos Piratas das Caraíbas; parece uma encenação de um filme de época, com barcos de negreiros, mas no século XXI. Estamos a falar de pessoas que dentro da sua terra não sabem o que fazer”.
Mães e bebés em perigo
Desde que os ataques em Cabo Delgado começaram, há três anos, que já se registaram mais de mil mortes na região. A violência e a periodicidade dos ataques têm-se agravado significativamente desde o início do ano, tendo mesmo levado o Governo moçambicano a pedir ajuda à União Europeia para tentar controlar a região. O número de deslocados internos em Moçambique já era extremamente elevado, sobretudo depois de os ciclones Idai e Kenneth terem atingido o país, em março e abril do ano passado, e a situação só dá sinais de piorar.
“Primeiro queremos saber quem são estas pessoas, registá-las, perceber o número de agregados familiares, perceber se há órfãos, se as famílias que estão a chegar estão completas, perceber qual a expetativa delas quando vieram para Pemba”, explica Ruy, antes de dar conta que apesar de toda a imagem trágica, o nascimento da bebé Awa (ou Eva, “aquela que vive”, na sua origem hebraica) em plena praia, é um sinal de esperança.
Daí que seja tão importante dar apoio a estas famílias, e garantir um acompanhamento que se estenda no médio prazo, e que não se fique apenas pela ajuda de emergência, que é fundamental, alerta.
Estamos a viver “uma tempestade perfeita, em que se tem a guerra, a pandemia e se desembarca na praia”, nota o responsável. “Não há condições nenhumas para estas pessoas, não há banhos; estas mães traumatizadas, têm que alimentar as crianças e não há leite. A prioridade é alimentar estas mães e os bebés e protegê-las da Covid-19. Hoje estivemos a dar apoios com banheiras, fraldas, mantinhas e leite e começámos a fazer os contactos com pediatras para ver se temos alguns que nos possam acompanhar”, referiu ainda. Tudo está a ser feito com recursos a voluntários ou beneméritos da sociedade civil. Ruy lamenta que em Maputo, por exemplo, não se tenha noção da dimensão da tragédia que se vive naquela parte do país.
“Precisamos de apoio psicológico para estas pessoas, para além de tudo o resto. As poucas instituições que estão a trabalhar no local estão a distribuir pão e chá; não há quaisquer condições de saneamento, as pessoas que chegam estão a dormir na praia…Temos a iniciativa da sopa solidária, e espero que o mais rapidamente possível consigamos providenciar alimentação quente a, principalmente, mulheres, crianças e idosos”, refere ainda.
Na ocasião, Ruy Santos aproveitou para lamentar a falta de cobertura mediática dos meios nacionais para este assunto em particular. Se depois de alguns ataques mais violentos ou mesmo dos ciclones as televisões e demais media se apressaram a acorrer à tragédia, agora parece que há uma espécie de apatia em relação ao assunto.
No início de julho o responsável fez uma viagem de 10 dias a Pemba, durante a qual se encontrou com D. Luiz Lisboa, o bispo daquela diocese e uma das vozes que mais se tem levantado para denunciar a situação. O objetivo foi fazer o levantamento das necessidades das pessoas – “que ainda estavam longe daquelas com que hoje nos deparamos” – e depois disso, o que aconteceu foi a criação “uma plataforma da sociedade civil, com o apoio, aliás, da Sociedade Moçambicana de Cabotagem (SMC). Recorde-se que Pedro Monjardino, gestor de projeto na SMC, esteve também envolvido na Operação Embondeiro, a operação conjunta da Cruz Vermelha e da Médicos do Mundo para responder às vítimas do Idai.
Esta plataforma civil, intitulada Todos por Moçambique, nasce da necessidade de que “a sociedade se organizasse e estivesse sempre de prevenção para responder a estas situações. Esta questão de Cabo Delgado está claramente a degradar-se e as pessoas não vão poder regressar tão cedo, vão muito provavelmente ser enquadradas numa lógica de reassentamento e aí começam todos os desafios de criar todas as estruturas básicas: escolas, saneamento básico…”, alerta ainda.
É que, se depois do Idai, por exemplo, foi possível a parte das pessoas regressar aos seus terrenos, ao lugar a que pertencem, essa não é a perspetiva de quem está a fugir de um conflito que parece não ter fim, e para cujo controlo o governo moçambicano já revelou não ter capacidade.
Reintegrar para reeguer
Por isso, pede Ruy Santos, para além da muito necessária ajuda de emergência, que passa por comida, assistência médica, medicamentos e dinheiro, é preciso garantir que daqui a uns tempos as famílias têm forma de se reerguer, de se sustentar, e de encontrar um novo caminho para as suas vidas.
Num país onde, genericamente, o acesso da população a condições básicas – água, saneamento, educação, saúde e até alimentação – ainda é um desafio, realocar milhares de pessoas torna-se num trabalho verdadeiramente hercúleo. A agravar a situação está o facto de Pemba ser uma cidade essencialmente turística, onde os empregos para pessoas que mal falam português – a utilização dos dialetos é ainda mais comum no norte de Moçambique – dificulta as tentativas de integração dos agregados familiares.
Daí que para Ruy Santos seja crítica a questão do registo e acompanhamento de todos aqueles que agora desembarcam, para que “não se percam no tempo e no espaço e não se tornem uma estatística”.
Para já, pouco mais têm conseguido fazer para além de tentar garantir um mínimo de conforto físico e emocional aos milhares de desembarcados. Mas com a ajuda de outras ONG, da sociedade civil e da comunidade internacional, Ruy espera poder mitigar em parte os efeitos que esta experiência está a ter na vida do país. E de crianças que, como Awa, não conhecem outra realidade que não a da tragédia.