Os dois países trataram a epidemia de forma totalmente oposta, mas nem por isso a situação é assim tão diferente. Enquanto Jair Bolsonaro continua a minimizar os riscos representados pelo SARS CoV-2, o presidente do Peru, Martin Vizcarra, declarou estado de emergência logo a 16 de março, com quarentena obrigatória e fechou as fronteiras. Foi mesmo dos primeiros a fazê-lo em todo o continente americano, de norte a sul. Mas os casos de pessoas contagiadas com Covid-19 não deixaram de aumentar por isso.
O retrato, neste momento, é bastante negro. Cerca de 85% das camas de cuidados intensivos estão ocupadas. Ventiladores disponíveis já não há. E, ao mesmo tempo, receia-se a sobrelotação nos hospitais. “A situação não é de emergência, estamos perante uma catástrofe. É o momento em que a pandemia ultrapassou a capacidade de resposta do setor da saúde” sublinhou à CNN Alfredo Celis, médico e professor da Faculdade de Medicina do Peru.
Daí a questão: como é que um país que respondeu assertivamente à pandemia acabou assim? A resposta? A profunda desigualdade que se vive acaba por explicar quase tudo.
“O que percebemos é que este vírus acabou por expor as nossas condições socioeconómicas”, sublinhou àquela estação americana Elmer Huerta, outro médico peruano. Como quem diz: muitos dos pobres do país não tiveram opção se não continuar a sair. Para trabalhar, comer ou mesmo levantar dinheiro do banco.
Sem frigorífico ou conta bancária…
Por exemplo, apenas 49% das famílias tem frigorífico em casa (uma percentagem que chega aos 61% nas áreas urbanas) – dados do último censo feito no país, em 2017. Isso traduz-se na necessidade de muitos irem ao mercado diariamente porque não têm como armazenar alimentos frescos. Essa grande procura diária acabou, depois, por tornar o distanciamento social algo impossível. Mesmo com a maioria a usar máscara, as longas filas obrigavam a enfrentar uma verdadeira multidão – todos os dias. “Não temos alternativa”, lamentava-se uma mulher numa fila, à televisão peruana. “Se não o fizermos não temos comida”.
Há mais números que ajudam a explicar o resultado desastroso na contenção da pandemia. É que apesar da maioria ter concordado com a limitação às saídas de casa, cerca de 71% da população ativa no Peru vive da chamada economia informal e recebe ao dia. Assim, quem não saísse para trabalhar não recebia, logo não tinha dinheiro para comer.
Depois, os próprios fornecedores dos mercados tornaram-se focos de contágio. Só no mercado de frutas La Victoria, na capital, Lima, 86% dos que o abasteciam estavam infetados – dados oficiais.
…e em casas superlotadas
Mas a grande concentração de pessoas não se fez sentir apenas nos mercados. À porta dos bancos, o cenário não era muito diferente. É que, paralelamente às restrições, o governo do Peru destinou entre 9% a 12% do seu PIB às pessoas que perderam os seus empregos ou trabalhavam por conta própria em empresas que perderam toda a receita. Ao todo, falamos de 6,8 milhões de famílias pobres e vulneráveis. Mas, como apenas 38,1% dos peruanos têm conta bancária, as filas às portas dos bancos para levantar esse dinheiro não demoraram. E com isso mais multidão, sem grande distanciamento social. E nem em casa foi possível contornar o problema. De acordo com Inquérito às famílias feito no ano passado, mais de 10% vivem em casas superlotadas – com cinco ou mais pessoas por quarto.
Tudo junto deu o que se vê agora: uma mistura explosiva. O presidente Vizcarra bem estendeu o estado de emergência até ao fim de junho, com recolher obrigatório. Ao mesmo tempo, fez saber que, apesar de em geral os peruanos concordarem com as medidas, mais de 3 mil pessoas foram detidas por desobediência. “É este tipo de comportamento egoísta que nos deixou nesta situação”, acusa o Presidente. Mas Huerta, o médico que assinalou como o vírus expôs as condições de vida dos peruanos, já avisou que é contraproducente pôr a culpa no povo: “Os problemas que enfrentamos não são de agora. A luta contra a pandemia tem de ter em conta a desigualdade.”