É quase uma ladainha mas, neste caso, convém repeti-la. Na China come-se tudo o que voa, exceto os aviões; tudo o que nada, exceto os barcos, tudo o que tem pernas, exceto as mesas. Os populares mercados chineses são disso o exemplo perfeito e, há apenas três meses, era aí possível encontrar expositores e jaulas com cães e gatos, com ouriços e pavões, com tartarugas e rãs, com crocodilos e escorpiões, com cobras e lagartos – ao lado de bancas com insetos, peixes, legumes e frutas. Uma mistura pouco convencional aos olhos dos consumidores ocidentais, mas algo normal para o comum dos asiáticos. Só que a Covid-19 alterou por completo o quotidiano destas gigantescas praças de abastecimento alimentar.
No início de janeiro, vários vendedores do mercado de marisco de Huanan, na cidade de Wuhan, adoeceram e alguns tiveram mesmo de ser hospitalizados devido à então misteriosa pneumonia. No dia 26 desse mês, quando ainda não tinham sequer passado 24 horas sobre o início oficial do Ano Novo Chinês, o Ministério da Agricultura e dos Assuntos Rurais decretou o encerramento de todos os mercados da metrópole, onde vivem 11 milhões de pessoas. Motivo: razões sanitárias, com base na suspeita de que Huanan era o principal foco do contágio e um espaço onde, habitualmente, se transacionam 75 espécies de animais selvagens. As estatísticas, nessa data, também já não ofereciam dúvidas: 2 613 casos confirmados do novo coronavírus e 80 mortos.
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Insalubridades e apetites
A história parecia condenada a repetir-se. Em novembro de 2002, um comerciante de Foshan, em Guangdong, contraiu uma estranha infeção, muito provavelmente a partir de um morcego, e semanas depois já todo o mundo sabia o que era a síndrome respiratória aguda grave, vulgo SARS. Também nessa ocasião, as autoridades chinesas fecharam os mercados no Sul do país para evitar a propagação da enfermidade, que acabaria por ceifar quase oito centenas de vidas. Mas o regresso à normalidade e a lógica dos interesses conduziu à sua progressiva reabertura, apesar dos alertas para a necessidade de se conterem as doenças zoonóticas – que se transmitem de animais para humanos e que têm tido um ritmo de crescimento vertiginoso nas últimas duas décadas. Zong Nanshan, o mais prestigiado pneumologista chinês, tem defendido publicamente a proibição dos mercados de animais selvagens. Milhares de cientistas, de ativistas e de organizações exigem o mesmo com o argumento de que estes são quase sempre espaços insalubres onde se misturam secreções, fluidos e dejetos, propiciando o ambiente ideal para novos vírus e doenças.
A 24 de fevereiro, o Comité Permanente da Assembleia Nacional Popular (o parlamento chinês) baniu o comércio e o consumo de várias espécies e, no início deste mês, até se dedicou a um caricato exercício semântico para catalogar o que é “gado especial” e “tradicional”, tal como “animais de estimação”. Na prática, cães e gatos passam a pertencer a esta última categoria e todas as províncias devem seguir o exemplo de Shenzen, única região a interditar o seu consumo – de acordo com a ONG Animals Asia, 10 milhões de cães e 4 milhões de gatos vão todos os anos parar à mesa das famílias chinesas.
Curiosamente, o Governo de Pequim admite mudar de opinião e decretar outras medidas de sinal contrário até 8 de maio, data limite para o processo ficar encerrado e serem ouvidos os principais interessados – agricultores, criadores, vendedores e demais atores de uma indústria que dá trabalho a 14 milhões de pessoas e é tida como indispensável para alimentar o país onde se concentra 22% da população do planeta.
Em 2003, devido à SARS, a China proibiu o comércio de animais e abateu milhões de civetas, cães, texugos e ratos
O problema é que o apetite dos 1 400 milhões de chineses está a crescer a um ritmo insustentável e uma das consequências é a atual pandemia da Covid-19. O antigo Império do Meio já é o maior consumidor e importador de alimentos do planeta. O recurso a animais selvagens massificou-se a partir dos anos 60 do século passado, na sequência das fomes resultantes dos desvarios de Mao Tsé-Tung. Desde a morte do Grande Timoneiro, em 1976, a par da urbanização e do crescimento económico, o consumo de carne per capita multiplicou-se por dez e hoje, em média, cada chinês come quase 50 quilos por ano. Algumas das novas iguarias são animais que praticamente desapareceram do território chinês e que têm de ser importados de forma ilícita. O melhor exemplo é o pangolim, o único mamífero que tem escamas e também o mais ameaçado do planeta. Anualmente, entre 400 mil e 2,7 milhões de pangolins são capturados em África e depois enviados para os mercados asiáticos. Todavia, não se trata de um caso único porque o contrabando de animais transcende a equação alimentar. A cosmética e a medicina tradicional chinesa constituem um problema adicional e isso reflete-se nas populações de elefantes, de rinocerontes, de tigres e até de burros. No Continente Negro, as capturas de asnos dispararam na última década porque a pele destes animais é usada no Egiao, um creme apresentado como remédio para maleitas antienvelhecimento e do foro sexual. À custa do mesmo produto, a ONG britânica Donkey Sanctuary receia que o Nordeste brasileiro deixe de ter burros até 2023, com mais de 100 mil a serem abatidos anualmente em matadouros financiados por empresários chineses. Uma questão que, em teoria, pode vir a ser debatida, entre 5 e 10 de outubro, na cidade chinesa de Kunming, na província de Yunnan, durante a convenção da ONU sobre diversidade biológica. Falta saber se o executivo de Pequim, mais preocupado com a “harmonia social” e em conter a pandemia da Covid-19 e duas outras crises virais (a peste suína africana e o Decapod Iridescent Virus 1, que afeta o marisco), aceitará tópicos sensíveis na agenda dos trabalhos.
Negócios chorudos
A importância dos mercados ditos frescos e de animais selvagens na China
14 milhões
De pessoas trabalham e dependem destes mercados, que são igualmente abastecidos por quintas onde se criam animais em cativeiro
€67 mil milhões
Estimativa do valor movimentado anualmente por esta indústria alimentar, segundo um relatório elaborado, em 2017, pela Academia Chinesa de Engenharia
20 mil
Número mínimo de mercados, em todo o território chinês, onde se comercializam 75 ou mais espécies de animais