“Estamos tão marcados pelo nosso tempo que nos esquecemos de como no século XVI o luxo, a opulência e a sofisticação política estavam em Portugal e Espanha e não em Inglaterra ou na Holanda.” O historiador André Canhoto Costa, 40 anos, surpreende-nos com esta frase logo no início do seu livro As Cinco Grandes Revoluções da História de Portugal (ed. Desassossego, 496 págs., €21,10), agora publicado. “Quem chama os pilotos, os desenhadores de mapas, os astrónomos, os geógrafos, e que depois tenta misturá-los com o saber universitário, são os países do Sul”, reforça o especialista à VISÃO.
Mas Portugal, escreve, “parece ter sido vítima de uma instabilidade permanente, gerando revoluções atrás de revoluções, nenhuma com profundidade suficiente para inverter o processo de pobreza relativa”, na comparação que ainda hoje subsiste com os países do Norte da Europa. Há um marco que André Costa estabelece para o começo dessa divergência: a Reforma Protestante liderada pelo alemão Martinho Lutero, que arranca no final do século XV e se concretiza no início do século seguinte. “As pregações de Lutero contra as burocracias hipertrofiadas da Igreja de Roma – e dos seus principais aliados, Portugal e Espanha – eram uma crítica ao mundo rico do Sul, dominador do comércio intercontinental e da arte de fazer a guerra no mar”, refere, citando o historiador britânico Trevor-Roper.
No entanto, amarrado a um capitalismo primitivo, dominado pelas elites, que ignoravam o povo analfabeto, Portugal começa logo a divergir, e muito, do hemisfério norte. A rebelião perante o papado levou à “erosão das hierarquias sociais nos países protestantes”, escreve o historiador. E “a tão famosa ‘ética protestante’ não decorreu das diferenças teológicas na espiritualidade cristã, mas foi sobretudo o resultado de uma disciplina interior, libertada por um novo sentido de dignidade cívica e amor à independência económica, assentes na capacidade de leitura e no exercício da razão”. Tudo isto resulta, como diz André Costa, na incapacidade nacional de “criar um líder verdadeiramente popular, oriundo de camadas mais baixas”, razão pela qual “as revoluções em Portugal nunca foram tão profundas como alguns momentos revolucionários em França, em Inglaterra e mesmo nos EUA”.
1383-85 A revolta dos bastardos
Quando D. Fernando morreu, a 22 de outubro de 1383, a uma crise sucessória associou-se uma “revolução”. Nuno Álvares Pereira, exímio militar, alinhou pelo mestre de Avis, no partido dos filhos segundos e bastardos, que viam a sua ascensão política e social barrada pelos primogénitos. Estes, para manter o statu quo, resolveram apostar no trunfo que julgavam mais poderoso, o rei de Castela, D. Juan I, que reivindicava o trono português com base no seu casamento com Beatriz, filha herdeira de D. Fernando, que aceitou o enlace quando estava já muito doente. Não houve aqui sobressaltos patrióticos, diz a tese histórica convencional. Uns e outros geriam os seus interesses – e, após três batalhas perdidas (a mais famosa das quais é a última, a de Aljubarrota), a que se soma um frustrado cerco a Lisboa, D. Juan I retirou-se cabisbaixo para Castela. A 6 de abril de 1385, nas Cortes de Coimbra, o mestre de Avis seria eleito rei, como D. João I, muito devendo à argúcia de um jurista eminente, João das Regras. A “guerra dos privilégios” foi ganha pelos filhos segundos e bastardos.
No seu livro, André Costa contesta a tese histórica prevalecente, atrás resumida. “Tendo a ser mais cauteloso do que a resposta convencional dos historiadores, de que não havia sentimento patriótico”, diz. “O facto de não haver Estado com um exército hierarquizado, profissional, não invalida, quando recuamos a esta época, que haja um sentimento de Portugal já muito desenvolvido”, acrescenta. O historiador diz que, “nesta revolução inicial, a sensação com que se fica é a de que foi muito disruptiva”. E justifica: “Uma das razões que pode levar-nos a dizer, até do ponto de vista sociológico, que ela foi profunda, prende-se com o facto de aqueles filhos segundos e bastardos das principais figuras do reino terem sido secundados por apoios de peso dos núcleos urbanos de Lisboa e do Porto.” Mas a revolução perder-se-ia porque, defende André Costa, “aconteceu cedo demais”. Faltou-lhe “um elemento fundamental – a Imprensa”, que só seria inventada no século seguinte pelo alemão Gutenberg. “Quando a revolução de 1383-85 se dá, o instrumento da comunicação da efervescência das ideias, que é fundamental para quebrar hábitos e conceitos antigos ou tradicionais, não estava lá”, conclui.
1640 Dar o dito por não dito
O império espanhol “entra em derrocada”, e “os negociantes portugueses, enriquecidos pelo comércio da Ásia e América, apoiam os fidalgos de segunda linha que colocam no trono um antigo rebento da casa de Avis, o duque de Bragança”, que se tornou o rei D. João IV. É assim que André Costa inicia, no seu livro, o capítulo que respeita à revolta de 1 de Dezembro de 1640, a qual terminou com seis décadas de “domínio filipino” espanhol. Mas, “finalizada a festa, todos esperavam agora a fúria do exército” do rei espanhol, Filipe IV, escreve o historiador, para acrescentar: “Lisboa estava em péssima situação defensiva e os castelos da fronteira permaneciam num estado lastimável. Não havia soldados, armas, fardamento ou dinheiro. O governo espanhol fora competente a desarmar o reino.” Este cenário irá condicionar o consulado turbulento do timorato D. João IV. Nas Cortes reunidas em 1641, “todos concordaram numa coisa: o estado do reino era miserável”, relata André Costa. Impunha-se pagar 24 mil homens e quatro mil cavalos. As Cortes aprovaram a criação de fábricas de armas e a construção de coudelarias. “Os procuradores dos povos aceitaram todos os sacrifícios, mas pediram a D. João IV para refrear as honras concedidas”, continua o historiador. Para combater a fome, “aboliu-se a tributação do cereal”. E foi aprovado um imposto geral, a décima, cobrada sobre todos os rendimentos, incluindo de “ministros dos tribunais, professores da universidade, fidalgos e nobres, sem exceção ou privilégio”. No entanto, na reunião das Cortes em 1642, o povo já reivindicava “uma distribuição mais justa, repartida segundo as posses de cada grupo”, conta André Costa. Nobres e clérigos “empurravam para a população o grosso do pagamento”. Apesar de tudo, o génio militar de um general alemão, o conde de Schomberg, recrutado no Estado-Maior do rei francês Luís XIV, derrotou em definitivo as pretensões de reconquista de Filipe IV, em 1665, na Batalha de Montes Claros.
1820 Com os privilégios não se brinca
Deixemos a devastadora guerra civil que opôs os irmãos D. Pedro, líder dos monárquicos liberais, e D. Miguel, chefe dos absolutistas (ambos filhos do rei D. João VI), para as pormenorizadas páginas do livro de André Costa. Importa aqui saber até onde chegaram os ventos democráticos e liberais, após a derrota dos absolutistas. Não há boas notícias. “A longa batalha do liberalismo entre 1820 e 1839 mostrou o sistemático triunfo das fidelidades pessoais, baseadas nos circuitos privados e até no estatuto militar, desvalorizando a discussão pública e a avaliação coletiva do mérito”, escreve o historiador. Para uma análise sumária, o especialista recorre a um artigo de 1825 do jornal Conimbricense, que se publicava em Londres, o qual sintetiza o falhanço da Revolução Liberal. A nobreza em Portugal monopolizava todos os cargos do Estado, lê-se, e “as presidências dos tribunais, as comissões diplomáticas, as comendas mais rendosas das ordens militares, os governos lucrativos das colónias, os postos maiores do exército, os grandes benefícios eclesiásticos, os bens da Coroa” continuavam a ser “apanágio das famílias nobres, quase por uma sucessão hereditária”. Não escapou ao autor, nota André Costa, que as exceções eram “os secretários, as amantes do palácio e parasitas das antecâmaras”, todos “por razões evidentes”. A Revolução Liberal falhou em grande medida, argumentava o articulista do Conimbricense, porque o “alto clero reagiu contra a perda de rendas nos direitos, a magistratura não podia conformar-se com os direitos iguais e o fim do acesso aos privilégios de fidalgos e o exército esperava grandes promoções e rendimentos e ficou também desiludido”. Se “descontarmos algum radicalismo da época, é uma boa síntese do século XIX português”, diz André Costa.
Com a revolução de 1820, relata o historiador, “já era dominante o problema do peso do Estado e da Igreja na economia”. Eminente historiador, político e cientista social, Oliveira Martins “diria que os religiosos eram um imposto moral sobre o povo”, lembra André Costa, “enquanto o Estado ia acumulando a sua colossal dívida”.
Apesar de tudo, “ocorreu uma tentativa para travar as dotações à Casa Real e os ordenados dos ministros, e foram aplicadas rendas eclesiásticas para abater a dívida pública, extinguindo-se vários privilégios do clero e da nobreza”, enquadra o especialista. “Discutia-se a reforma dos forais (para uniformizar o sistema fiscal e extinguir tributações privadas) e da passagem dos bens da Coroa a bens nacionais, além da necessária extinção de mosteiros e conventos”, acrescenta. Mas “as Cortes não foram capazes de fugir à principal tentação conservadora: reconduzir o Brasil ao estatuto de colónia, revertendo os tribunais e a administração criados no Rio de Janeiro, o que exasperou a opinião pública brasileira”, escreve. A verdade, porém, é que “fosse ou não um choque económico, a independência do Brasil causou danos políticos irreversíveis à Revolução Liberal, retardando mais de um século a revolução democrática”, diz.
O “paradigma colonial enquistara-se”: quando Bernardo de Sá Nogueira, militar e político liberal, “quis abolir a escravatura na década de 1830 e lançar um colonialismo capitalista e industrial à inglesa, chocou com uma elite comprometida na defesa de um comércio arcaico, que nem por isso era mais produtivo economicamente”, conta. À VISÃO, André Costa sublinha que era “muito difícil fazer” a “rutura” com a hierarquia eclesiástica, como uma revolução impunha. Era “muito forte o enraizamento centralizado na Igreja Católica”, em “união com o próprio poder político, até em termos quotidianos”, diz.
Mas, como reforça o historiador, há que somar outros fatores: “O analfabetismo mantém-se, e entram no anedotário literário e político português até ao século XX as ‘chapeladas’, o caciquismo eleitoral, o desinteresse da população por eleições, assembleias, deputados, parlamentos – as pessoas olhavam para isso com a maior desconfiança.” Missão impossível, pois.
1910 Das boas intenções a Salazar
Em Portugal, escreve André Costa, “não encontramos nada de semelhante aos debates ingleses sobre a eleição de presbíteros e diáconos em assembleias e ainda menos o elogio da antiga tradição da ‘ecclesiae’, no sentido de ‘ekklesia’, assembleias de cidadãos em Atenas”. Isto para dizer que “alguns historiadores relacionam o atrofiamento das assembleias políticas com o sucesso económico, o crescimento do negócio do açúcar e sobretudo a descoberta do ouro”. O que “permitiu prolongar o modelo arcaico, ditado por um governo régio de direito divino, com perda de influência dos conselhos – mesmo os conselhos formados por apenas alguns aristocratas”.
E por aqui se dá o salto para a revolução que derrubou a monarquia e implantou a República, em outubro de 1910. Apesar de ser uma das primeiras repúblicas modernas na Europa, logo a seguir à Suíça e à França, André Costa defende que “não é difícil relacionar o fracasso do parlamentarismo republicano com a aversão à discussão pública”. E que, além do mais, “a República foi demasiado breve para combater formas sociais e hábitos políticos ancestrais”. Traduzindo: “Enquanto a República foi uma tentativa de salvar a democracia por uma classe média urbana, independente economicamente e politizada, mas muito radical e associada ao comércio de retalho, grande parte do País, analfabeto, estava ainda na dependência das velhas formas económicas.” Sublinha o historiador que “uma larga fatia da população rural portuguesa ao longo do século XX foi indiferente ao Estado, vivendo numa autossuficiência económica arcaica e fora dos mecanismos modernos de disciplina (medicina, segurança social, escolarização)”.
Havia, pois, terreno fértil para o golpe de 28 de maio de 1926, que levou à ditadura militar de cariz nacionalista e antiparlamentar – e que depois, em 1933, conduziu ao Estado Novo de Salazar. A ascensão do salazarismo, descreve André Costa, “fez-se pela violência (preventiva e repressiva)”, o “controlo político” das Forças Armadas (mais tarde envolvidas numa longa e desgastante Guerra Colonial), a “cumplicidade da Igreja Católica”, o “corporativismo e o controlo económico, e o investimento em propaganda”. Anota que, “se é verdade que os modelos rurais comunitários nas aldeias mantinham formas de decisão democrática – embora controladas pelos anciãos ou juízes populares –, eram sobretudo de natureza oral e totalmente incompatíveis com a complexidade da vida moderna”.
Por sinal, destaca o historiador, “o Estado Novo considerou a universidade um espaço de produção de elites e, apesar de a propaganda apontar para a promoção de estudantes humildes, sem o beneplácito da Igreja ou do patrocínio político do regime, era quase impossível um filho de operário ou de um trabalhador rural – a esmagadora maioria do País – chegar à universidade ou desenvolver interesses intelectuais”. Como consequência, “os indivíduos com experiência política e educação, essenciais para governar, conviviam num espaço exíguo e nutriam relações antigas, com ódios e invejas muito enraizados”.
André Costa também contesta o suposto êxito económico do Estado Novo, já com Marcelo Caetano, o sucessor de Salazar, à frente do regime ditatorial. “Se recentemente muitos historiadores falam no crescimento das taxas do PIB entre 1968 e 1973, esquecem-se que é mais fácil ter elevadas taxas de crescimento quando o ponto de partida é miserável”, diz.
Às populações rurais, que habitavam “uma espécie de terra de ninguém”, o historiador elogia-lhes a “desobediência e manha, perante a GNR e os braços repressivos do Estado”. Essas “regiões inóspitas (Beira Alta, Alto Minho, Trás-os-Montes, Baixo Alentejo)” eram, apesar de tudo, “suficientemente extensas” para se manterem como “ilhas de autonomia”.
André Costa não perde a oportunidade para referir “a épica descrição da fuga” do escritor Aquilino Ribeiro “às prisões do Estado”, no início do século XX, “a caminho das aldeias montanhosas da sua infância, entre nevoeiros, penedias e caminhos de cabras, as Terras do Demo, onde era fácil trocar as voltas aos polícias e inspetores”. Saboroso.
1974 25 de Abril sempre, mas…
Quando se dá o golpe militar do 25 de Abril de 1974, que derrubou a ditadura do Estado Novo, a “Revolução dos Cravos” que se seguiu tinha à frente um País com uma taxa de analfabetos de 25 por cento. Já os países do Norte e do Leste da Europa tinham praticamente todas as suas populações alfabetizadas desde o século XVIII, lembra André Canhoto Costa. Ou seja, foi preciso esperar até 1974 “para que os governos se dedicassem a massificar o ensino a todo o território”, escreve.
À VISÃO, o especialista, a propósito da proximidade histórica dos acontecimentos, diz que não quer “correr o risco, que surge de imediato, de desvalorizar a revolução democrática”. Mas, por outro lado, considera que “se pensarmos rigorosamente e tivermos cuidado naquilo que dizemos, é importante começar a fazer alguns diagnósticos – até para corrigir, se é essa a vontade”.
Acrescenta que “a timidez da revolução foi marcada mais uma vez pela enquistada desconfiança dos portugueses perante o regime parlamentar”. E que “os partidos rapidamente foram colonizados pelas elites e as Forças Armadas controladas por oficiais conservadores”. Por isso, afirma, “falta avaliar até que ponto o desinteresse pelas assembleias e pelo parlamentarismo pode ser combatido pela simples escolarização e o aumento da informação”. Refere também que “os mais recentes estudos académicos sobre desigualdade apresentam a escassez de mobilidade social como uma constante da natureza, desvalorizando o papel das instituições desenhadas para promover a mobilidade”. E afirma que faltam estudos históricos para “avaliar até que ponto este problema afetou a qualidade dos políticos, intelectuais e professores”. Mas deixa aos leitores uma irónica boa notícia: “Portugal pode estar na fase ascendente da curva, em que uma quantidade ótima de pobreza, com o aumento da escolarização, fornece o incentivo ideal para a indústria.”