A notícia soou bombástica. As medidas de austeridade aplicadas em Espanha durante a última crise, entre 2011 e 2016, teriam provocado mais mortes do que a Guerra Civil que aquele país viveu na primeira metade do século XX. Meio milhão de vidas colhidas pelos cortes do Governo de Rajoy. Só que, afinal, não é bem assim. Vamos por partes.
Os números não eram de desprezar. Saíam de um estudo de nove doutorados da Unidad de Investigación de Atención Primaria e do Hospital Universitário Nuestra Señora de Candelaria, nas Canárias. Antonio Cabrera de León, que liderou a investigação, integra ainda a Área de Medicina Preventiva e Saúde Pública da Universidade de La Laguna, em Espanha. Mais, o estudo científico foi aceite em janeiro pela prestigiadíssima revista da American Public Health Association, que rejeita cerca de 85% dos trabalhos apresentados. Acabou por estar disponível online a 11 de julho. E foi quando a bomba explodiu.
Com o objetivo de analisar a mortalidade em Espanha e nos EUA, antes e depois de esses países terem implementado políticas divergentes de resposta à crise financeira de 2008, o estudo examinou as estatísticas entre 2000 e 2015. Verificou que, até 2010, a mortalidade diminuiu nos dois países, só que, em 2011, a realidade mudou abruptamente em Espanha – ultrapassou o esperado em 29% e em 41% em 2015.
Estes dados levaram os autores a escreverem, taxativamente, no resumo da sua investigação, que ainda se encontra publicado nessa revista científica: “Neste período de 5 anos, houve mais 505 559 mortes do que as esperadas. O excesso de mortalidade entre 2011 e 2015 é atribuível às políticas de austeridade.”
Dez dias depois, rebenta outra bomba. A presidente da sociedade espanhola de Saúde Pública, Beatriz López-Valcárcel, veio dizer que estes números são “um disparate”. Juntou-se com mais dois especialistas – Cristina Hernández, da London School of Economics, e Miguel Porta, da Universidade Autònoma de Barcelona – e perceberam que o salto brutal que se deu no ano de 2011 (que até superava a taxa de mortalidade dos anos 1990) se devia apenas e só a uma mudança de metodologia com que se calcula a população de referência nas estatísticas da mortalidade ajustada por idade. Com esta mudança, tornava-se impossível fazer comparações, porque a base já não era a mesma. Menos mal que um editorial muito crítico ao estudo, precisamente assinado por Miguel Porta, também foi publicado no último número da revista. Mas, até à sua publicação, ninguém deu por nada – nem autores, nem revisores do artigo.
Com esta correção, González não quer dourar a pílula da época de austeridade por que passou Espanha. E nem nega que tenha havido mortes associadas aos cortes de rendimentos, mas sabe que as reais consequências nunca são imediatas – só se conseguem contabilizar a longo prazo. E conclui: “Este estudo com meio milhão de mortos não é uma visão fiel do que se passou.”