No final de janeiro, enquanto o mundo se distraía com os primeiros desvarios de Donald Trump na Casa Branca, era divulgado em Bruxelas, sem qualquer alarido mediático, um relatório sobre os lobbies na União Europeia (UE). Elaborado pela organização não governamental Transparency International, o documento fazia um retrato demolidor dos políticos comunitários e da forma como estes se deixaram confiscar pela lógica dos interesses privados: 30% dos eurodeputados que abandonaram a política (em 2014) trabalham agora como lobistas e, no caso dos antigos “comissários europeus”, o número “é superior a 50%”. Um cenário que não constitui exatamente novidade para quase ninguém devido aos inúmeros casos que têm vindo a público, a começar pelo que está a ser protagonizado pelo homem que foi presidente da Comissão Europeia entre 2004 e 2014: o português José Manuel Durão Barroso.
Foi contra este estado de coisas que a irlandesa Emily O’Reilly prometeu lutar quando, há três anos e meio, iniciou funções como provedora de Justiça da UE. Esta antiga jornalista já afirmou que as instituições comunitárias têm de dar o exemplo no que às boas práticas diz respeito e que é preciso combater as portas giratórias (a circulação entre os cargos públicos e privados) e os conflitos de interesses. Na sua opinião, essa é uma prioridade absoluta para conter a vaga populista e evitar a implosão do projeto europeu o “momento Maria Antonieta”, como gosta de se lhe referir. Foi por isso que decidiu, no mês passado, aceitar as queixas da petição subscrita por mais de 150 funcionários e ex-funcionários da UE para que a contratação de Durão Barroso pelo Goldman Sachs não fique impune e dar igualmente provimento à queixa de dois académicos (Alberto Alemanno e Vesselin Paskalev), que acusam o Executivo de Bruxelas de pouco ou nada ter feito para a impedir. Nesse sentido, O’Reilly informou o atual presidente da Comissão, Jean-Claude Juncker, que vai abrir uma investigação e que pretende ouvi-lo a ele e aos demais comissários. Por outro lado, solicitou ainda que lhe seja disponibilizada toda a documentação sobre o Barrosogate durante o “encontro/inspeção” agendado para os próximos dias, em função das respetivas agendas. Iniciativas que parecem encaixar à medida na estratégia da própria provedora, assente em três pilares: “Visibilidade, relevância e impacto.” Será que ela teria feito o mesmo, caso não tivesse existido esta petição e o alvo do processo fosse alguém menos conhecido e importante do que Durão Barroso? Será que a provedora trata por igual todos os dossiês? Será que faz sempre jus à sua máxima de que “a luz do dia é sempre o melhor dos desinfetantes”? Vamos pegar num exemplo.
QUEM QUER REFORMAS DE LUXO?
A 7 de setembro de 2008, o jornal britânico The Sunday Times publicou um artigo intitulado Como um eurocrata revela segredos comerciais em jantares de luxo. O eurocrata em causa era um dos mais influentes funcionários alemães da UE, Fritz Harald-Wenig, que aceitou encontrar-se com os supostos representantes de uma empresa chinesa que estava a ser alvo de uma investigação anti-dumping da Comissão Europeia. Em três repastos nos mais caros restaurantes de Bruxelas, Wenig forneceu informação confidencial sobre o processo em curso e deu-se ao trabalho de discutir um conjunto de vantagens financeiras que lhe foram propostas pelos seus interlocutores. Por ser jurista e não querer ser apanhado em falso, regateou 100 mil euros pelos seus bons ofícios, mas exigiu que o dinheiro fosse colocado num paraíso fiscal para quando se reformasse. Ao tornar-se público, o escândalo motivou a imediata reação do Executivo liderado por Durão Barroso que prometeu “tolerância zero com comportamentos pouco éticos” e suspendeu preventivamente Wenig.
Menos de oito meses depois, a 1 de maio de 2009, Fritz Harald-Wenig reformou-se tranquilamente, aos 61 anos, e sem qualquer tipo de sanção. O Tribunal da Função Pública da União Europeia deu como provados os factos acima descritos mas no acórdão do processo (F-80/08) fica a saber-se que a suspensão decretada ao alemão ficou sem efeito devido a um “erro processual” que obrigou ainda a Comissão Europeia a devolver-lhe seis mil euros devido a deduções salariais. Segundo os juízes, o afastamento de Wenig deveria ter sido tomado pelo colégio de comissários e não apenas pelo comissário então responsável pelos assuntos administrativos, o estónio Siim Kallas. Este enredo acabaria por ir parar às mãos do antigo provedor de Justiça, Nikiforos Diamandouros. A 28 de junho de 2013, no ponto 26 da sua proposta relativa à queixa 362/2011, o grego escreve que “a Comissão deveria agora ser capaz de explicar ao público por que razão estes factos não foram suficientes para iniciar um procedimento disciplinar” contra Franz Harald-Wenig. Só que o grego cede o lugar a Emily O’Reilly e esta, no final de 2015, arquiva definitivamente o caso. Porquê? Os seus serviços não se mostraram disponíveis para responder. A portuguesa Margarida Silva, investigadora na Corporate Europe Observatory, uma ONG que se dedica à monitorização dos lobbies na UE, não acredita que Durão Barroso e Wenig sejam casos comparáveis ou tenham tratamentos diferentes devido aos seus países de origem: “Durão não pode ser visto como um bode expiatório, ele devia ser um exemplo, era presidente da Comissão e aceitou ir trabalhar para um dos bancos responsáveis pela crise que vivemos desde 2008.” Quanto a Emily O’Reilly, é natural que não se poupe a esforços para provar qualquer prevaricação de Durão Barroso. Falta saber se o fará em tempo útil e de acordo com as suas ambições políticas. Jornais como o Le Monde, o Le Soir e o Politico já revelaram que ela está interessada em ser Presidente da Irlanda já em 2018.
Artigo publicado na VISÃO 1254