Cicuta, aconitum e beladona ou mercúrio, cianeto e toxinas botulínicas. Desde a Antiguidade que a espécie humana tem um fascínio especial por venenos. De Sócrates ao Papa Clemente VII, de Napoleão a Alexander Litvinenko, são inúmeras as personalidades que perderam a vida de forma trágica e à custa de operações conspirativas que incluíam substâncias tóxicas. Os mitos à volta deste tipo de assassínios são intermináveis, mas a realidade parece ultrapassar a ficção como voltou a ficar demonstrado a 13 de fevereiro no aeroporto de Kuala Lumpur, na Malásia.
Um passageiro dirige-se nas calmas à zona do check-in e, quando tenta ler num dos ecrãs qual o terminal do seu voo para Macau, é atacado por uma mulher que o agarra pela cabeça e lhe atira um líquido ou um gás para cima. Com uma camisola branca onde se lê LOL (acrónimo inglês de rir a bandeiras despregadas), a atacante afasta-se enquanto o homem percebe ter sido vítima de uma ação sem graça alguma. Aturdido e nervoso, mas consciente e a andar pelo seu próprio pé, procura alguém que o possa ajudar. Os seguranças e os funcionários acabam por encaminhá-lo para o gabinete médico do aeroporto. Pouco tempo depois sai de maca, para que uma ambulância o transporte até ao hospital. Acaba por falecer no caminho. Eis o relato possível do que terá acontecido e que é mais ou menos visível nas imagens captadas pelas câmaras de videovigilância da aerogare, reveladas esta segunda-feira, 20, pela Fuji TV, um canal japonês. O elenco completo e os protagonistas desta trama digna de um filme de James Bond não são obviamente conhecidos. No entanto, apesar de poucas, há certezas.
A começar pelo morto. Chama-se Kim Jong-nam e é meio-irmão do Presidente da Coreia do Norte. Até 2001, este boémio poliglota era visto como o delfim da mais conhecida dinastia comunista do planeta, mas acabaria por ser afastado do poder e do seu país numa intriga palaciana que o levou a exilar-se em Macau. A assassina, entretanto detida, foi logo batizada como Miss Veneno pela imprensa local. As autoridades malaias detiveram ainda uma outra mulher que participou no ataque e dois indivíduos de nacionalidade supostamente norte-coreana. Por outro lado, terá ainda identificado mais três ou quatro suspeitos que, horas depois, abandonaram o país através de diferentes ligações aéreas que tinham como destino final Pyongyang, a capital da Coreia do Norte.
Indícios que apontam de forma clara para o regime do Grande Camarada e líder supremo do país, Kim Jong-un. Anthony Sahakian, um amigo do falecido desde os tempos em que ambos frequentaram o liceu na Suíça, explicou ao jornal The Guardian que o mais provável é que algum general norte-coreano tenha tomado a iniciativa de assassinar Kim Jong-nam com o propósito de agradar e cair nas boas graças do homem que dirige o país mais paranoico e claustrofóbico do hemisfério norte. Uma tese que vale tanto como qualquer outra, pela simples razão de que dificilmente se apurará a verdade. Neste tipo de complôs, com demasiados interesses e serviços de espionagem à mistura, esperar pela verdade é algo que pode demorar demasiado tempo e sem resultados fiáveis. Seis exemplos verídicos que demonstram até que ponto o mundo dos serviços secretos pode ser tão louco e implacável como nos filmes e nos livros de ficção.
001
BODAN, O ENVENENADOR-MOR
Imagine um jovem ucraniano que odiava os russos e a URSS. Estudou para ser professor na sua cidade natal, Lviv, mas um crime menor andar nos transportes públicos sem bilhete deixou-o à mercê da chantagem dos agentes do KGB, os serviços secretos soviéticos. Para Bodan Stashynsky uma contrariedade converteu-se numa curta mas brilhante carreira profissional. Aos 19 anos, torna-se informador; aos 22, é enviado para a escola de espionagem de Kiev; aos 25 já a residir na antiga RDA é um assassino profissional. A sua primeira vítima, Lev Rebet (na foto), um líder nacionalista ucraniano, é abatido à queima-roupa com uma cápsula de cianeto, lançada de um objeto colocado dentro de um jornal. A 15 de outubro de 1957, volta a usar uma versão mais sofisticada dessa miniarma para envenenar Stepan Bandera, outro nacionalista ucraniano que vivia exilado em Munique. Em Moscovo, Bodan é aclamado como herói e agraciado com a Ordem da Bandeira Vermelha. Ainda antes de completar o seu 30º aniversário, casa com Inge Pohl, uma alemã-oriental que também não morria de amores pelos regimes comunistas. O KGB quer que ela se torne também agente. A recusa faz com que o casal tenha o futuro traçado. Ele é colocado na capital russa, enquanto ela, grávida, permanece em território germânico. Quatro meses após o nascimento de Peter, o filho de ambos, a criança morre misteriosamente. No dia em que deveriam enterrar juntos o filho, 12 de agosto de 1961, Inge e Bodan desertam para Berlim Ocidental e pedem asilo aos EUA. De início ninguém acreditou na história que os dois contavam e que inspirou The Man with the Golden Gun, escrito em 1964 por Ian Fleming, o criador de James Bond. Levados para a América há mais de meio século, o casal pode estar ainda vivo e a viver anonimamente sob proteção do FBI.
002
FIDEL E O CHARUTO DE LSD
Na mesma altura em que Bodan desertava do KGB, a guerra fria punha os EUA e Cuba em rota de colisão. Em Washington, o Presidente Kennedy só queria ver-se livre do guerrilheiro barbudo que passara a mandar em Cuba, Fidel Castro. Após o fiasco da invasão da Baía dos Porcos, em abril de 1961, a CIA recebeu ordem para fazer tudo ao seu alcance para matar o líder comunista e por todos os meios (o que incluía opositores cubanos e sobretudo a máfia de Chicago que perdera o monopólio do jogo com a revolução na ilha). E assim nasce a operação Mongoose. Os resultados são conhecidos. Fidel sobreviveu a 11 presidentes americanos e ainda assistiu à vitória de Donald Trump, duas semanas antes de falecer, em novembro de 2016. Pelo meio, como escreveu Fabían Galante, antigo chefe da contraespionagem cubana, El Comandante foi alvo de 634 atentados. Alguns com contornos mirabolantes que incluíam um fato de mergulhador impregnado com substâncias tóxicas (Fidel era adepto de pesca submarina), sapatos com tálio e até charutos com LSD. Em março de 1963, Fidel escapou por mero acaso às delícias de um batido de chocolate. A cápsula de cianeto que lhe estava reservada partiu-se acidentalmente no frigorífico do Hotel Havana Libre.
003
WADEA E O CHOCOLATE FATAL
A gula há séculos que serve de pretexto para envenenamentos mortais. Nos anos 60 e 70 do século passado, Wadea Haddad era conhecido por ser dirigente da Frente Popular de Libertação da Palestina, um dos maiores inimigos de Israel e, também, louco por chocolate. Algo que os dirigentes hebraicos teriam de aproveitar em seu proveito para neutralizar o homem responsável por vários ataques terroristas e pelo famoso sequestro de um avião da Air France que fazia a ligação Telavive-Paris, em 1976. A Mossad descobriu que Haddad não resistia a tabletes e bombons de uma conhecida marca belga. Foi quanto bastou para desenvolverem um veneno assassino disfarçado de recheio cremoso. Em março de 1978, o dirigente palestiniano devorou sem saber a “prenda” preparada pelos israelitas e morreu oficialmente de leucemia, num hospital da antiga Alemanha de Leste.
004
MARKOV E O CHAPÉU ASSASSINO
No século XIX havia bengalas especiais a serem usadas como armas de defesa. A 11 de setembro de 1978, o mundo ficou a saber que existiam chapéus de chuva capazes de matar. Nesse dia, o dissidente búlgaro Georgi Markov, jornalista e escritor que residia em Londres, foi assassinado na ponte de Westminster, junto ao Tamisa, após um homem lhe ter tocado “acidentalmente” na coxa direita com o dito acessório. Reza a lenda que foi um toque fortuito e até mereceu um pedido de “desculpas” da parte do homicida, que nunca foi identificado. O ataque é atribuído ao KGB, mas suspeita-se que tenha sido executado por um agente da Durzhavna Sigurnost, a polícia secreta búlgara. Tratou-se do primeiro e do mais mediático homicídio do género a que a capital britânica assistiu até à morte de Alexander Litvinenko. Em 2006, este antigo operacional do FSB (agência sucessora do KGB) foi envenenado com polónio 210 e, cinco anos depois, o inquérito liderado pelo juiz Robert Owen concluiu que tinha havido o envolvimento da Rússia e “talvez até com a aprovação” do Presidente Vladimir Putin. Moscovo não tolera dissidências e Litvinenko tornara-se avençado dos serviços secretos britânicos (MI-6) e ainda dava informações a Espanha sobre os investimentos dos oligarquias e das máfias russas na Península Ibérica.
005
KHALED E A ORELHA REDENTORA
A 30 de julho de 1997, Israel foi alvo de um atentado terrorista no mercado de Mahane-Yehuda, em Jerusalém, e o então primeiro-ministro, Benjamim (Bibi) Netanyahu prometeu vingar as 185 vítimas (16 delas mortais). Ninguém duvidou que o Governo hebraico iria mobilizar a Mossad e respetivos Kidon (agentes especiais encarregados de executar os inimigos de Israel) para perseguirem os responsáveis. Nas oito semanas seguintes, definiram-se prioridades, planearam-se operações e identificou-se um alvo: Khaled Meshal, presidente do comité político do Hamas, o conhecido movimento islâmico palestiniano. A missão tinha um problema irresolúvel: Meshal residia em Amã, a capital da Jordânia, e, desde 1994, Israel tinha em vigor um acordo de paz com o reino hachemita que interditava quaisquer manobras da Mossad no seu território. Bibi achou que valia a pena arriscar.
A 25 de setembro, dois supostos turistas canadianos vão atrás de Meshal. Um deles transporta um veneno letal que deve ser atirado à cara do palestiniano; o outro leva na mão uma lata de Coca-Cola que deve ser aberta segundos antes do ataque, como manobra de diversão. Na retaguarda, mais de uma dúzia de operacionais aguardam para o que der e vier. As coisas não correm bem. Meshal percebe que há algo de errado quando o abordam e, aos gritos, oferece resistência. Algumas gotas venenosas atingem-no numa orelha. A confusão instala-se e a dupla da Mossad é detida. O rei Hussen é avisado e, por telefone, desanca Netanyahu e solicita também os bons ofícios de Bill Clinton. O primeiro-ministro israelita é obrigado a disponibilizar o antídoto às autoridades jordanas e Meshal é salvo in extremis. O fiasco é tal que o Executivo de Telavive, como moeda de troca, teve ainda de libertar vários prisioneiros do Hamas, incluindo o xeque Yassin, o líder do movimento.
006
KIM, O GRANDE ARTISTA
É muitas vezes apontado como o mais importante espião do século XX, por ter sido agente duplo ao serviço do Reino Unido e da União Soviética. Harold Adrian Russell Philby, vulgo Kim Philly, nasceu na Índia em 1912 e estava destinado a uma vida agitada ou não fosse ele filho de um diplomata e aventureiro. Formado em Cambridge, foi recrutado pelos russos ainda na universidade. Durante mais de três décadas comete a proeza de ser um dos principais responsáveis da contraespionagem britânica, desempenhando um papel fundamental na Segunda Guerra Mundial contra a Alemanha nazi, até desertar para Moscovo, em 1963, onde viverá até ao final da vida. Um livro que vai ser lançado no próximo mês em Espanha, Un espía en la trinchera, do jornalista Enrique Bocanegra, revela até que ponto Philly era um artista do disfarce: enviado para cobrir a guerra civil como repórter de Times, passa vários meses do lado republicano em 1937 e, dois anos depois, faz o mesmo junto dos nacionalistas do general Franco. Quando o conflito termina, e por se ter feito passar por um jornalista conservador com simpatias nazis, Franco decide condecorá-lo pessoalmente com a Cruz Vermelha de Mérito Militar.
007
POPOV, O VERDADEIRO ESPIÃO
Tal como Kim Philly, também Dusko Popov era um mestre nas artes da espionagem. Um e outro poderiam disputar o título de melhor espião do último século e ambos viveram episódios dignos de entrarem em qualquer filme de ação. Enquanto o britânico tentava ser discreto e reservado, o jugoslavo era um boémio que adorava dar nas vistas, nem que fosse para camuflar as suas reais intenções. Dois livros recentemente lançados no mercado português Na Toca do Lobo, de Larry Loftis (editora Vogais), e Estoril, um Romance de Guerra (Contemporânea), de Dejan Tiago Stankovic traçam o perfil ao advogado nascido no antigo império austro-húngaro, a pretexto das suas desventuras em Lisboa e no Estoril, onde passou boa parte da Segunda Guerra Mundial. Em 1976, ele próprio admitiu numa entrevista ter sido a personagem que inspirou James Bond, criado por Ian Fleming com quem se cruzou em território português, no verão de 1941, quando este era também um espião ao serviço de Sua Majestade. Ninguém duvida que a cena de bacará protagonizada por 007 em Casino Royal é decalcada da famosa noite em que Popov apostou 5 mil dólares numa mesa de jogo do Estoril. No entanto, o currículo deste homem a que os alemães chamavam Ivan e os britânicos Triciclo supostamente por gostar de levar duas mulheres para a cama não se pode esgotar nas semelhanças com o agente secreto mais conhecido da História. Bond é um produto de entretenimento. Popov foi decisivo para derrotar Hitler.
(Artigo publicado na VISÃO 1251)