Idomeni, inferno na terra, morreu, dizem. As autoridades gregas que, de início, prometeram levar uma semana a recolocar as pessoas em campos oficiais, anunciaram logo na passada quarta-feira ter “concluído a tarefa”. Mas morreu realmente? Foi o que fui tentar perceber. No mesmo dia em que “o milagre” foi anunciado estava em Thessaloniki, a caminho da fronteira. Consegui passar o primeiro controlo da polícia mas não tive a mesma sorte no segundo.
A realidade, no entanto, é de tal forma flagrante que não há como a controlar ou contornar. Idomeni não morreu – partiu-se em mil bocados. Tendas e pessoas acumulam-se agora na beira da estrada a poucos quilómetros da fronteira, em estações de gasolina, casas abandonadas e em qualquer outro vestígio de humanidade que reste. Centenas (milhares?) fugiram para as montanhas com medo de serem deportados; famílias partiram-se, a somar ao já horrendo número de menores desacompanhados. Os campos oficiais improvisados ou sobrelotados não oferecem condições básicas de dignidade. Idomeni pode ter sido esvaziado mas está longe de morrer.
Viajo com Vasilis, um jornalista/activista grego sem afiliações que viveu em Idomeni durante 22 meses, tentando incessantemente denunciar a situação, e João (nome fictício), que chegou à Grécia de barco e se apresentou como Sírio às autoridades, por saber que a sua verdadeira nacionalidade lhe barraria a entrada na Europa, terra dos sonhos. Com João partilho o ano de nascimento – 1990 – e as aspirações de criar família própria, trabalhar, ir a concertos. É disso que falamos durante grande parte do tempo – da noiva que tem no país de onde vem, de como não quer voltar mais pobre do que veio, do curso de Gestão e Administração que deixou a uma matrícula de concluir.
A fronteira está no horizonte. “Vês aquelas casas ali?” – pergunta-me João – “É já Macedónia. Tentei atravessar duas vezes mas fui apanhado e trazido de volta. Cheguei tarde demais, uma semana depois de a fronteira fechar…”.
A poucos quilómetros de distância, em Evzoni, encontramos o acampamento selvagem Hara Hotel. Alguns adolescentes tentam tirar água do motor de um camião para lavarem os pés. Há tendas por todo o lado. João conta-me que “tomava banho” a cada 15 dias quando estava em Idomeni.
Ziah, que também pertence ao grupo dos (19)90, tem 28 namoradas e é traficante. Tenta convencer João a atravessar com ele e não perde tempo a negociar preços. É muito rico e está contente com o fecho de Idomeni. É mais negócio, diz-me, sorridente. Mas já mais sério, explica que não é um dos piores, até colabora com a polícia por vezes e leva as pessoas só até à Sérvia, não até à Alemanha. Zimos, o proprietário do hotel, é “uma pessoa suja”, todos concordam. Arrenda tendas a refugiados e detesta as ONGs porque as suas doações entram em concorrência directa com o supermercado improvisado que criou. Para ele, como para os restantes protagonistas desta história, há atenuantes. “Ele precisa de sobreviver. Quando tentou ajudar, no início, recebeu uma conta de água de 5000€”.
Como Ziah, muitos traficantes operam aqui. Hotel Hara é a sede principal das operações, e isso não é segredo para ninguém. Tudo se passa à luz do dia, à minha frente, com a conivência de todos os envolvidos. A servir de sombra a algumas das tendas, um placard gigante de publicidade anuncia “Welcome to Greece!”. Abençoada seja a Europa.
Seguimos para Nea Kavala, um campo oficial controlado/gerido pelo exército e onde encontramos alguns dos grandes nomes internacionais (UNHCR, Save the Children, Cruz Vermelha). Conseguimos entrar graças a Vasilis, que conhece e é respeitado por todos: refugiados, autoridades, traficantes.
O campo é quente, num terreno arenoso e deserto, sem sombras, ventoso. Há muitas moscas. Não se vê o fim às tendas, e não se vê senão tendas.
A primeira pessoa que encontro é Hanan, que chegou ontem de Idomeni (este campo recebeu 79 recolocados). Tem os mesmos anos que o Ziah tem namoradas, 3 filhos (2 meninas, idades 12 e 10, e um bebé de 8 meses), e fala “no good English”. Sara (a filha mais velha), pelo contrário, fala um inglês espantoso e prontifica-se a fazer a tradução, depois de explicar que aprendeu em Idomeni, onde ia perguntando palavras aos tradutores, porque como nem pai nem mãe se sentem confortáveis na língua franca, ela quer que percebam o que se passa. Hanan quer sair dali, nem que seja de volta para Idomeni. Lá eles estavam estabelecidos, sabiam onde encontrar comida e água. Ontem não conseguiram alimentar-se e hoje Hanan não tem leite para o bebé. “És de Portugal? Leva-nos para Portugal!”. O pai aparece e levanta os braços: “Cristiano Ronaldo!”. Vasilis conta que é a primeira vez que se ouve nos campos outro destino que não Alemanha, e que Portugal conquistou de facto um lugar nos sonhos destas pessoas. Mas dizem que não sabem o que fazer, que nunca ninguém os contactou e que não sabem como ou onde pedir ajuda.
O grupo de Yazidis com quem nos encontramos numa das tendas, em que sou a única mulher, querem ir todos juntos – não importa para onde, desde que todos juntos. Têm medo que a sua cultura desapareça por completo. “A prisão de Guantánamo é melhor do que aqui”. Há rumores de que um programa de pré-registo terá início nos campos, presencialmente, mas há muita informação contraditória. Para já (não) funciona através de Skype, em horários reduzidos e divididos por línguas, passando-se dias e dias sem ninguém atender. Nos gabinetes dos eurodeputados Ana Gomes e Josef Weidenholzer (austríaco) estamos há já dois meses em contacto com este grupo, tentando pressionar as autoridades (gregas, portuguesas, europeias) para a sua recolocação em Portugal, depois de alertados para a situação deplorável em que se encontram, nomeadamente por serem uma minoria religiosa particularmente perseguida pelos terroristas do Daesh.
À saída encontramos uma família à porta do acampamento. O pai(?) pede para os deixarem entrar e que tem um irmão a viver ali. O exército explica que o campo está cheio e que vão chamar um carro para os levarem a outro campo. O pai(?) insiste: “O meu irmão está lá dentro, e viemos a pé de Idomeni”. Não fico para o desfecho mas não parece haver muita margem: “Vocês não podem escolher o campo”. Se a reunificação familiar não resulta ali, como funcionará em larga escala?
Por último, estação EKO, outro campo selvagem numa bomba de gasolina. EKO é conhecido como o campo com o ambiente mais familiar, conhecido como “Resort EKO”, por oposição a Hara Hotel. Numa das tendas uma criança apresenta problemas de respiração graves. Mas às vezes é bom estar doente, explicam-nos, porque se pode ser considerado um caso vulnerável. Até ser tarde demais.
Muitas organizações e cidadãos gregos, como Vasilis, tentam repor alguma humanidade. Em Poligasó, uma pequena vila, nasce o primeiro Laboratório Criativo para refugiados, sob o tema “integração é participação”. Oikopolis e Solidarity Now têm sede no mesmo edifício em Thessaloniki. Duas organizações, os mesmos objetivos. Providenciam de tudo: apoio legal, aulas de línguas, distribuição de roupas e, o projecto principal de Oikopolis, a cantina de Idomeni, que chegou a servir 12000 refeições por dia. Dimitar, voluntário, está contente com o fecho de Idomeni mas preocupa-se com as pessoas que não foram realojadas em campos. “Como lhes faremos chegar a comida?”.
Idomeni não morreu. Partiu-se em mil bocados, como a Europa.