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Sidse Babett Knudsen, protagonista da série Borgen
DR
Há pouco mais de sete anos, Margrethe Vestager era deputada e líder da formação política criada pelo seu trisavô materno, no início do século XX, o Radikale Ventre (Partido Social Liberal ou do “café com leite”, por ser uma amálgama de tendências e congregar pessoas que dão mais importância à resolução de problemas concretos do que a uma matriz ideologica rígida). Devido à sua popularidade, os criadores de uma série televisiva pediram-lhe então que fosse acompanhada durante algumas semanas por Sidse Babett Knudsen, uma das mais conhecidas atrizes dinamarquesas. O resultado chamou-se Borgen, uma produção que retrata o quotidiano da líder de um pequeno partido que chega a primeira-ministra. Um sucesso de audiências em que a protagonista se debate entre idealismo, pragmatismo e cinismo.
A dama implacável
Margrethe Vestager é uma mulher de muitos saberes, mas nunca deve ter ouvido falar de Rafael Bordalo Pinheiro, nem do Zé Povinho criado pelo ilustre artista português. No entanto, no seu gabinete de Bruxelas, a comissária europeia da Concorrência tem uma chamativa peça de cerâmica cuja mensagem equivale ao manguito: uma mão fechada em que sobressai o dedo médio em riste – uma prenda que recebeu de um grupo de sindicalistas quando, em 2012, ainda era vice-primeira-ministra da Dinamarca e defendeu uma série de medidas que incluíam a redução do subsídio de desemprego, de quatro para dois anos. Como a própria costuma admitir, o objeto em causa tem o condão de a recordar diariamente que, em política, é preciso tomar decisões difíceis e que estas nunca podem agradar a toda a gente. Algo com que esta dinamarquesa de 48 anos aprendeu a lidar sem grandes traumas e uma peculiar dose de irreverência.
Tamanho e desempenho importam?
Os sindicatos do seu país ainda hoje não lhe perdoam a determinação que teve em reduzir a despesa do Estado e a forma como o assumiu publicamente: “Sadan er det jo!” (“o que tem de ser tem muita força!”). As críticas foram mais que muitas mas ela insistiu e até repetiu por nove vezes essa mesma expressão num discurso. A polémica reforçou-lhe a popularidade e acabou por envolver o então líder da oposição, Lars Lokke Rasmussen (atual primeiro-ministro), que a acusou de promover um pacote de reformas que pecava por ser demasiado “pequeno”. A resposta não se fez esperar: “Tenho por hábito ser cautelosa quando os homens avaliam tamanhos; e talvez – mas isto é capaz de ser uma perspetiva feminina – eu esteja mais interessada no efeito”.
O humor e o gosto de Margrethe Vestager pelo tricô são sobejamente conhecidos nos corredores do poder em Copenhaga e Bruxelas, mas não foi por isso que a revista Foreign Policy a colocou o ano passado entre as personalidades mais influentes do planeta. Tal nomeação deveu-se ao empenho da comissária em não dar tréguas às empresas e aos estados que fazem tábua rasa das regras da concorrência na Europa – e muito em particular por “rebentar a bolha da Google”.
Nas últimas semanas, a escolha da revista americana ganhou um pretexto adicional. A 20 de abril, a Comissão Europeia apresentou uma nova declaração de guerra à firma californiana, acusando-a formalmente de abuso de posição dominante por impor restrições aos fabricantes e operadores de redes móveis. Pela voz de Margrethe Vestager, a Google tornou-se alvo de uma “Comunicação de Objeções”, forçando-a responder às alegações de exigir a instalação do sistema Androide na generalidade dos telemóveis e dos tablets, além de pagar aos operadores para usarem o seu navegador e motor de busca Chrome: “A investigação por nós efetuada até à data leva-nos a crer que o comportamento da Google impede aos consumidores uma escolha mais ampla de aplicações e serviços móveis e constitui um obstáculo à inovação para outros intervenientes, em violação das regras antitrust da União Europeia”. Se a gigante digital nada fizer e o caso for levado às últimas consequências, a multa pode atingir, no limite, 10% do seu volume anual de negócios – mais de 7 mil milhões de euros – o que seria um valor recorde.
Como se controlam os gigantes?
Desde 2010 que a Google nega ter práticas monopolísticas no mercado comunitário e os seus dirigentes tudo têm feito para convencer os dirigentes europeus. O antecessor de Margrethe Vestager no cargo de comissário da Concorrência, o espanhol Joaquín Almunia, tentou em diversas ocasiões chegar a um acordo mas nem os almoços que teve com o presidente da empresa, Eric Schmidt, na capital belga e em Davos, permitiram ultrapassar o impasse. No início deste ano ficou claro que o diálogo se esgotara. As pressões e as operações de charme da Google intensificaram-se após o Parlamento Europeu aprovar – por 500 votos a favor, 137 contra e 37 abstenções – um relatório demolidor sobre as suas práticas abusivas. No final de fevereiro, o administrador executivo, Sundar Pichai, veio pela primeira vez à Europa apresentar as suas razões, numa universidade de Paris. O público jovem ouviu-o e deixou-se seduzir, mas os meios de comunicação social zurziram-no por prometer 200 mil cursos de formação tecnológica e outras medidas mediáticas no preciso momento em que a sua empresa tem um sério diferendo fiscal com o Estado francês. Pichai explicou então que a Google paga os seus impostos a tempo e horas e que, no Hexágono e no resto da Europa, é alvo de uma “carga fiscal de 19%, valor que é também a média da OCDE”.
Um argumento que tem colhido nos EUA, no Canadá e até no Reino Unido, onde a empresa fechou há quatro meses um acordo de 166 milhões de euros. A justiça britânica e o Governo de David Cameron desistiram das queixas de evasão fiscal e a Google viu resolvido o diferendo que durava há mais de uma década.
A questão é que Margrethe Vestager não parece inclinada para este tipo de consensos. Desde a sua tomada de posse, a 1 de novembro, abriu dezenas de averiguações e de processos contra inúmeras multinacionais e contra os próprios estados-membros. Sempre em nome da sacrossanta concorrência. Que o digam a Amazon (suspeita de práticas comerciais desleais com livros digitais), a Apple (cuja sede europeia na Irlanda inspira todo o tipo de dúvidas tributárias), a Gazprom (acusada de abusos comerciais nos seus contratos de venda de gás aos países bálticos e não só) ou a McDonald’s (por abuso de posição dominante e distorcer as regras nos contratos de franchising). Uma lista de respeito, se tivermos em conta que inclui a empresa de maior capitalização bolsista do mundo, a segunda maior empregadora privada do planeta, a quinta maior energética e a firma com maior número de clientes a nível global. Gigantes cada vez mais difíceis de controlar pelo seu caráter transnacional – ou metanacional – e cujo poder se impõe demasiadas vezes à soberania de muitos países. Gigantes que conseguem definir e contornar as regras a seu belo prazer e que tendem a aumentar a sua influência à medida que a economia digital se generaliza. Aliás, não é por acaso que o polémico empreendedor Balaji Srinivasan ficou conhecido por afirmar que Sillicon Valley já manda quase tanto como Wall Street e o Governo dos EUA. Ou que a Google seja hoje uma das maiores financiadoras dos lobbies em Washington e em Bruxelas.
É contra tudo isto que Margrethe Vestager tem de mostrar o que vale. E, até agora, esta filha de sacerdotes luteranos que foi ministra da Educação e dos Assuntos Religiosos aos 29 anos, não se tem saído mal. Nem mesmo quando tem a ingrata missão de denunciar as cedências e as violações dos estados da União Europeia às regras da concorrência. Vamos a mais uns quantos exemplos. Espanha, Portugal e uma dúzia de outros países estão na sua mira por subvencionarem empresas do setor elétrico. A Bélgica viu-se por ela obrigada a pagar 700 milhões de euros que deveria ter cobrado, em impostos, ao longo da última década, a um grupo de multinacionais – entre as beneficiadas estão a química BASF, a petrolífera BP e a ABInBev, a maior cervejeira do mundo.
É possível investigar o patrão?
No entanto, o seu caso mais delicado tem a ver com o Luxemburgo. Entre 2002 e 2010, o Grão-Ducado celebrou 548 acordos fiscais com mais de três centenas de empresas que permitiram a estas últimas poupar milhares de milhões. Um esquema denunciado publicamente dias depois de Margrethe Vestager e do colégio de comissários chefiado por Jean-Claude Juncker iniciar funções. Pormenor: Juncker foi o responsável pelas finanças do Luxemburgo desde 1989. O escândalo é conhecido por Luxleaks e tem a marca do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, o mesmo que está agora a revelar os Panama Papers. Tal como no caso belga, trata-se de uma fuga massiva aos impostos. Em vez de pagarem os 29% devidos legalmente ao fisco luxemburguês, algumas das empresas pagavam apenas um ou dois por cento. E aqui a questão é complicada: Vestager e a sua equipa de 900 pessoas estão incumbidas de investigar a personalidade de que dependem hierarquicamente, Jean-Claude Juncker. Nas poucas entrevistas em que mencionou o assunto, ela garante ter liberdade para fazer o que bem entender e nunca ter discutido o assunto com o homem que foi primeiro-ministro do Luxemburgo até dezembro de 2013. Uma versão difícil de acreditar e que a vai obrigar a tomar medidas em breve. Afinal, esta terça-feira, 26 de abril, no Luxemburgo, começaram a ser julgadas três pessoas por terem tornado possível o Luxleaks. E não estão a prestar contas por qualquer marosca fiscal. Pelo contrário.
É o caso do francês Antoine Deltour, 30 anos recém-cumpridos e ex-funcionário da PricewaterhouseCoopers (PwC), que se habilita a ficar preso cinco anos e a ter de pagar uma multa de 1,25 milhões de euros ao Grão-Ducado. Terá sido ele, quando era consultor da PwC e auditava as contas do território onde vivem mais de 100 mil portugueses, a surripiar os documentos que deram origem ao escândalo. Falta saber se a sua sentença será lida antes ou depois de Margrethe Vestager tomar uma posição oficial sobre o Luxemburgo. O que ela decidir demonstrará se ainda vale a pena considerá-la como a mulher mais poderosa de Bruxelas e a guardiã da concorrência – e da justiça – na Europa.
Culpada ou inocente na queda do Banif?
Certamente que os deputados portugueses gostariam de chamar Margrethe Vestager à comissão parlamentar de inquérito à venda e resolução do Banif, mas embora a representante máxima da poderosa Direção Geral da Concorrência europeia (conhecida por DG Comp, do inglês Competition) tenha muito que explicar sobre o colapso daquele banco, isso não vai acontecer. O Parlamento não tem poderes para tal. Mesmo assim, a comissária europeia já prometeu esclarecer, por escrito, as dúvidas levantadas nas últimas semanas. E são muitas.
É à DG Comp que compete avaliar os pedidos de ajudas de Estado, à luz das regras da livre concorrência. De acordo com o Governo, terá respondido com um rotundo não à hipótese inicial, avançada no final do ano passado, de incorporar o Banif na CGD, controlada por capitais públicos. Antes, chumbara oito versões do plano de reestruturação do banco, atirando-o para o abismo. Na véspera da resolução, que custará aos contribuintes portugueses pelo menos 3 mil milhões de euros, terá ainda influenciado a venda do banco, por apenas 150 milhões de euros, ao espanhol Santander – o único dos interessados que “encaixava” no perfil do comprador desenhado pelas autoridades europeias.
Claro que Margrethe Vestager nega ter imposto o desfecho do Banif, mas a troca de correspondência, já revelada, entre a DG Comp e as autoridades portuguesas mostra como os modelos de resolução e venda do Banif ao Santander foram determinados em Bruxelas, apesar dos prejuízos para o Estado português. E nem o ministro das Finanças, Mário Centeno, parece ter dúvidas: “Que não tenha havido uma forte imposição, e uma forte posição negocial da Direção-Geral da Concorrência nesta fase do processo, não posso corroborar”, disse na semana passada no Parlamento.
* com Clara Teixeira