A conta-gotas, através de relatos de sobreviventes, médicos que primeiro trataram os feridos e testemunhos de forças policiais começa-se a conseguir reconstituir o que aconteceu na sexta-feira, 13, na sala de espectáculos Bataclan, um dos locais escolhidos pelos atacantes e onde mais pessoas morreram.
“Christophe”, nome fictício de um francês que contou a história ao jornal francês Le Fígaro, relata ter visto quatro supostos terroristas dos atentados de Paris dentro de um carro mal-estacionado, numa rua a três minutos do Bataclan, duas horas antes de terem começado os ataques. Christophe estaria na esplanada de um restaurante no 11º bairro a beber uma cerveja quando viu chegar um Volkswagen Polo preto, de matrícula belga. Seriam 19h35m, hora de Paris. Christophe terá depois decidido levantar-se e ir dizer-lhes que estavam num local onde o estacionamento era proibido. Do lado de lá dos vidros do carro, nem uma palavra. “Não abriram a janela e houve um que olhou para mim de forma maliciosa. Pareciam mortos-vivos, como se estivessem drogados”, disse ao Le Fígaro.
Christophe terá voltado para o restaurante, mas sempre de olho no carro, com as luzes apagadas. A certa altura tê-los-á visto com smartphones e um computador portátil. Pelas luzes provenientes dos aparelhos, terá então conseguido ver melhor como eram ou o que vestiam. Por volta das 20h15 um carro da polícia terá passado na rua, mas sem reparar no Polo mal estacionado. Às 21h30, Christophe terá saído do restaurante e reparado que os quatro homens continuavam exatamente no mesmo sítio. Dez minutos depois, tomaria conhecimento das explosões junto ao estádio e dos rumores de que haveria outras zonas da cidade debaixo de ameaça terrorista. É então que terá tentado pelo menos “80 vezes” ligar para a polícia, receando que os quatro homens que estariam há duas horas dentro de um carro pudessem ter ligação com os ataques. Sem êxito. O caos tinha tomado conta da cidade e ninguém terá atendido as chamadas.
Minutos depois, o Bataclan era invadido por três homens munidos de kalashnikov enquanto decorria o concerto dos Eagles of Death Metal. As primeiras vítimas estavam junto à entrada principal da sala: eram seguranças ou espectadores que tinham saído para fumar. De acordo com uma infografia do Le Monde, os terroristas terão entrado pelo lado do bar, logo a disparar, e fazendo novas vítimas. Deste momento só se conhecem até à data as imagens que um espectador recolhia do concerto e que mostram os músicos a fugir do palco quando se ouvem os primeiros tiros. Sobreviventes contam que durante uns segundos os presentes não reagiram porque pensavam que o som faria parte do espetáculo.
Todas as pessoas que estavam em cima do palco conseguiram fugir, alegadamente através de uma das saídas laterais. Havia duas: alguns dos espectadores fogem para lá, conseguindo sair sãos e salvos. Enquanto uns procuram as saídas, outros atiram-se para o chão e outros procuram trancar-se dentro de casas-de-banho, camarins e outras salas do edifício.
Um dos sobreviventes contou ter-se escondido com cerca de vinte pessoas num dos camarins. Ali dentro, terão usado todos os objetos de que dispunham para tentar bloquear a entrada, como um sofá e um frigorífico. Ali terão ficado, no maior silêncio possível, na esperança de não serem encontrados pelos atiradores. Do lado de fora conseguiam ouvir os gritos e os disparos. A divisão não tinha janelas e ao fim de mais de duas horas o espaço tinha atingido altas temperaturas e era irrespirável. Todos os que ali estavam terão conseguido sobreviver.
Aos primeiros minutos dos ataques, há quem também tenha procurado as janelas dos pisos mais altos do edifício. São esses momentos, quando a polícia ainda não tinha acorrido ao local, que são captados num vídeo do jornalista do Le Monde, que vivia nas traseiras do Bataclan. São imagens especialmente chocantes: mostram pessoas a fugir pelas portas, outras a arrastarem corpos e outras penduradas nas janelas. A mulher que muitos pelo mundo fora viram pendurada na janela estaria a gritar que estaria grávida, pedia ajuda, ia atirar-se mas precisava que alguém a segurasse. Cá em baixo, todos gritavam e corria, ninguém parava. Acabaria por ser salva por um homem a quem pediu ajuda pois estaria a perder as forças. Não se voltaram a ver. O marido da mulher procurou-o depois, via Twitter, para que ela pudesse agradecer o gesto que a salvara. Eram os dois sobreviventes.
A mulher não quis dar a cara até ao momento. Sebastien, visto nas redes sociais como um dos heróis dos atentados, falou ao La Provence. “Quando se ouviu o primeiro tiro, todos pensámos que seria um efeito pirotécnico. Quando se ouviu o segundo é que percebemos o que era. Ouvimos pessoas a gritar, o cantor saiu do palco. As luzes acenderam-se, olhei para a entrada e vi dois ou três homens com umas kalashnikov. (…) Toda a gente se deitou. Vi uma pessoa ao meu lado levar com uma bala na cabeça.”
De seguida, Sebastien terá tentado fugir por detrás do palco, onde se julgava haver uma saída de emergência. Como não a encontrou subiu as escadas que o levaram ao balcão da sala de espectáculos. À sua frente estavam duas janelas. É aqui que entra a história da mulher grávida.
“Numa das janelas estava suspensa uma mulher grávida. Suplicava a quem estava em baixo que a agarrasse. Mas em baixo também era o caos. Passei pela outra janela, agarrei-me a um orifício de ventilação a 15 metros do chão. Aguentei cinco minutos até que a mulher, que já não tinha forças, me pediu que a ajudasse a voltar ao edifício. Foi o que fiz.”
Não a voltou a ver. “Voltei ao meu esconderijo, não foi a melhor opção. Cinco minutos depois, senti o cano de uma kalashnikov roçar-me na perna. Um dos terroristas disse-me: “Sai daí e deita-te no chão!”
Foi aí que os atacantes fizeram alguns reféns, enquanto, do 1º andar, disparavam sobre as pessoas que estavam no rés-do-chão. Segundo o relato de Sebastien ao La Provence, os atacantes terão dito: “Estamos aqui para que passem por tudo aquilo por que os inocentes passam na Síria. Ouvem os gritos, o sofrimento? É para que sintam o medo que as pessoas sentem todos os dias na Síria. Estamos em guerra. É só o princípio. Vamos massacrar os inocentes, queremos que repitam isto a quem vocês conhecem.”
A determinado momento, infiltra-se na sala um comissário da BAC 75, uma brigada anti-crime francesa, acompanhado daquele que seria o seu motorista. É ele o responsável por abater o primeiro terrorista, que estava na plateia, prestes a matar mais algumas das pessoas que ainda não tinham conseguido fugir da sala. Mas logo de seguida, o polícia teve de se pôr em fuga: tornou-se no alvo que os outros dois atacantes, no primeiro andar, mais queriam abater. Os meios eram desproporcionais: uma simples pistola a lutar contra metralhadoras.
Terá sido neste momento, por volta das 22h15 (hora de Paris) que entra em acção a BRI, brigada de intervenção da polícia francesa. Uns concentram-se em retirar do local os sobreviventes que estavam no rés-do-chão do edifício. Outros, pé ante pé, sobem ao primeiro-andar, à procura dos outros atacantes. À televisão francesa BFM, explicam que a escuridão na sala e a planta do edifício, com muitas salas e corredores, dificultavam a operação. Por todo o lado, havia corpos de mortos e feridos.
Neste momento, Sebastien ainda se encontrava com os terroristas, que já teriam pedido ao grupo de reféns para telefonarem às estações de televisão BFM e Itélé, para falarem com jornalistas. Sem êxito. Mais uma vez, ninguém terá atendido. Os atacantes diziam ser do Estado islâmico e ora ameaçavam abater um refém a cada cinco minutos ora queimavam um maço de notas de 50 euros, numa tentativa de mostrar que, para eles, o dinheiro não tinha qualquer importância. De seguida, os terroristas terão pedido para falar com os polícias. Aos reféns caberia a função de vigiarem as janelas e de impedirem que os polícias se aproximassem.
Mas nesse momento, de acordo com a reconstituição feita pelo canal de televisão francês BFM, já alguns polícias de elite estavam do lado de fora da sala de arrumos onde os dois atacantes guardavam os reféns. Foi aqui que entrou em acção um negociador: os atacantes comunicavam através do telefone de um dos reféns. Esse tempo foi essencial para que polícias e bombeiros retirassem do local a maior parte dos feridos. Passado vinte minutos a polícia percebeu que as negociações não dariam frutos, já que, de acordo com testemunhos, a única reivindicação seria a saída do local das forças de segurança.
Sebastien contou ao La Provence que os atacantes colocaram dois reféns a fazer de escudos humanos à entrada da porta que os separava dos polícias. Parece milagre, mas as forças especiais terão conseguido disparar e arrombar a porta com um aríete sem que os reféns ficassem feridos. De seguida, terão atirado uma granada de atordoamento, depois outra. Sebastien fugiu nesse momento. “Os membros das forças especiais passaram-me por cima. Fui espezinhado mas foi a dor mais feliz da minha vida. Senti-me protegido.”
Mais tarde reencontrou o Jeff, o amigo com quem tinha ido ver o concerto. Estava vivo, tal como a mulher grávida que salvara. Apesar de um intenso tiroteio de três minutos, e de um dos coletes-bomba ter explodido, todos os reféns terão saído ilesos. O escudo usado pelas forças policiais francesas ficou cravado de balas.