É irónico que o slogan de uma das maiores companhias do mundo, símbolo do “sonho” voluntarista e do poder global norte-americano – o “Just do it”, da Nike – se tenha baseado nas palavras de um condenado à morte. “Let’s do it”, disse Garry Gilmore, quando, frente a um quinteto de fuzilamento, em 1978, lhe deram dois minutos para as suas últimas palavras – assim inspirando o publicitário Lan Wieden a criar o famoso mote.
Gilmore foi o primeiro condenado à morte depois de uma moratória de facto ter sido imposta pelos tribunais norte-americanos, durante dez anos até 1976. Discutiam os doutos senhores das leis exatamente o que constituía, ou não, um “castigo cruel e raro” – proibido pela oitava emenda à Constituição dos EUA. Quando o Supremo Tribunal de Justiça norte-americano se decidiu pela manutenção do castigo capital, Gilmore foi morto numa antiga fábrica de conservas da prisão do Estado do Utah, no deserto.
Pouco depois, em 1982, o Texas torna-se o primeiro estado a executar alguém recorrendo ao mais “humano” método da morte ‘medicalizada’ – “limpa”, “segura” – através da administração de três drogas: um anestésico, um paralisante e uma droga que para a pulsação. E, em 2000, praticamente todos os 32 Estados que ainda aplicam hoje este castigo tinham banido as execuções a tiro, pelo menos enquanto primeira opção.
Mas, na semana passada, o Utah aprovou o regresso dos fuzilamentos, enquanto outros estados ponderam trazer de volta a cadeira elétrica e a câmara de gás. O motivo? A escassez: primeiro foi a Hospira, companhia do Illinois que produzia o tiopental, uma das drogas usadas, que, sob pressão, anunciou que a deixaria de fabricar. Muitos estados viram-se assim para a Europa, adquirindo antes uma droga chamada pentobarbital. Mas a Lundebeck, a companhia dinamarquesa que a fabrica, protestou contra o seu uso em execuções – e também deixou de a vender para os EUA.
Assim, os executores voltaram-se para outro tipo de drogas, não verificadas pela FDA (Food and Drug Administration), ao mesmo tempo que legislavam para que pudessem esconder a origem – duvidosa – dos fornecedores dos venenos. E, neste processo, várias das execuções realizadas proporcionaram verdadeiros filmes de terror: Dennis McGuire, que confessou a violação e morte de uma jovem recém-casada, em 1989, demorou 25 minutos a morrer, em janeiro de 2014. E houve vários casos semelhantes: no episódio mais famoso, em 2009, Rommel Broom esteve duas horas em sofrimento antes do governador do Ohio, Ted Strickland, interromper a execução (continua, no entanto, no corredor da morte).
Demasiados erros
Agora, o Texas, o Ohio, o Utah, e outros estão prestes a esgotar as suas reservas de pentobarbital, levando-os a aprovar legislação que faz regressar os métodos mais antigos e “bárbaros” de matar: a câmara de gás pode estar de regresso ao Wyoming, a cadeira elétrica à Virgínia. O que por sua vez, põe a questão da pena de morte na ordem do dia, numa altura em que as sondagens mostram que o apoio à pena de morte na América está no seu ponto mais baixo das últimas décadas: apenas 60% da população, quando, em 1994, eram 80% (isto segundo a Gallup, que afere este apoio desde 1972).
Enquanto os americanos repensam o castigo capital, segundo o relatório anual da Amnistia Internacional sobre a Pena de Morte, ele caminha a bom ritmo para o desaparecimento – mesmo nos EUA, o número de execuções efetivas tornou a baixar (de 39 para 35; ver infografia). De resto, o relatório continua a apontar que o país que, na Europa, se pode comparar à América (enquanto únicos países renitentes no seu respetivo continente) é a… Bielorrússia, também conhecida como a última ditadura estalinista da Europa.
As razões para a mudança na opinião que os norte-americanos têm sobre a pena de morte são essencialmente práticas: nos últimos anos, os testes de DNA vieram pôr em causa o próprio sistema de justiça, ilibando quase duas dezenas de pessoas, em 151 casos conhecidos em que se provou, ainda em vida, que o condenado à morte estava inocente.
Um dos últimos casos foi o de Kwame Ajamu (antes Ronnie Bridge) do seu irmão, Wiley Brigde e de Ricky Jackson, de 17, 20 e 19 anos, respetivamente, negros que foram falsamente acusados de matarem um homem branco, em 1975, e passaram 39 anos na prisão (um recorde), à espera de serem assassinados a qualquer altura (pelo Estado ou pela população prisional). Foram todos libertados no final de 2014, depois da única testemunha – Eddie Vernon, que estava a morrer – se ter arrependido de ter entrado no “jogo de mentiras” das autoridades de Cleveland, Ohio, e ter feito a confissão de última hora.
Uma justiça racista
Casos como o de Brigdeman provam que, vista da perspetiva do seu sistema de justiça, a América, “Land of the free”, é tudo menos livre. De facto, os EUA têm 2,3 milhões de presos, quase tantos como a Rússia e a China, duas campeãs do desrespeito dos direitos humanos, juntas. Quando se compara a importância relativa da população prisional per capita verifica-se que os EUA têm dez vezes mais presos do que as sociedades democráticas europeias da França, Reino Unido e Alemanha – que juntos têm sensivelmente a mesma população. São 751 detidos por cada cem mil habitantes, que comparados, por exemplo, com os 151 da Espanha ou os 63 do Japão, ficam muito mal na fotografia.
Os negros são parte altamente desproporcionada dos detidos na América (quase 50% dos presos são negros, mas eles representam apenas 14% da população). Isto, num sistema em que o lobby privado que se encarrega da gestão das prisões tem conseguido fazer passar, a nível estadual, legislação que acaba com as reduções de penas por bom comportamento, reduz a aplicação das circunstâncias atenuantes e alarga o espetro dos crimes passíveis de cadeia.
Mais: a pena capital, nos EUA, é aplicada de forma que, estatisticamente falando, se prova racista e preconceituosa: as probabilidades de se ser condenado à morte por se matar um branco são inúmeras vezes superiores às de se receber esse mesmo castigo por matar um negro. Mas, de certa forma, ainda bem que o Utah quer de novo o esquadrão de fuzilamento ou o Wyoming a câmara de gás. Como diz Rene Denfeld, cuja profissão é a de investigar a credibilidade das provas em casos de pena de morte: “O mito da execução ‘humana’ começou com as injeções letais. Agora, o Utah tornou a sacar as armas e as execuções passaram a ser reais outra vez. Isso significa que podemos voltar a discuti-las.”