A asturiana Henar Ortiz Álvarez é uma republicana dos sete costados e uma das muitas pessoas que, desde 2 de junho, reivindica uma ida às urnas para que os espanhóis decidam o que fazer com a monarquia. Nessa data, o homem que tem sido rei do maior país da Península Ibérica desde novembro de 1975 informou os seus súbditos que pretendia abdicar do trono e cedê-lo ao seu filho. Foi quanto bastou para se iniciar uma vaga de manifestações que parece não ter fim à vista e que tem mobilizado milhões de pessoas nas principais cidades do reino – incluindo a rebelde e polémica cinquentona que há muito se define como “laica, vermelha e republicana”. E que tem a particularidade de ser… tia de Letizia Ortiz, a futura rainha de Espanha. A sua conta na rede social Twitter tem sido um festival de mensagens antimonárquicas: “Abaixo o regime!”; “És tu que deves decidir, democracia já!”; “A chefia do Estado não deve ser recebida por herança!”. Uma ativista que também não esconde a sua admiração pela nova coqueluche da política nacional, Pablo Iglésias, líder do Podemos, movimento criado há apenas quatro meses mas que elegeu quatro eurodeputados nas eleições de 25 de maio e que, segundo uma sondagem publicada dia 8 no jornal catalão El Periódico, poderia conquistar 58 lugares no Parlamento e converter-se no terceiro maior partido de Espanha, caso houvesse agora eleições antecipadas.
Provocações, escândalos e divisões
Há mais de uma década que Henar Ortiz dá nas vistas e nem sempre pelas melhores razões. Acusada de querer vender imagens do casamento da sobrinha, em 2003, a troco de 600 mil euros, sempre duvidou de que Letizia alguma vez pudesse vir a ser rainha. Algo que reiterou o ano passado, em várias entrevistas: “Ela é muito esperta, mas acho que não está preparada para reinar e não chegará a reinar”, afirmou, por exemplo, à edição espanhola da Vanity Fair. Uma afirmação que, muito provavelmente, era também subscrita por um outro elemento da família, Menchu Álvarez del Valle, a mãe de Henar e a avó paterna de Letizia. Foi esta antiga jornalista radiofónica, de 86 anos, a responsável pela mais provocadora tirada que o Príncipe das Astúrias ouviu, quando foi apresentado aos Ortiz: “Não se preocupem. Se isto da monarquia der para o torto, ser rei no exílio é uma bela profissão!” Mas o tempo encarregou-se, para já, de desfazer os augúrios dos parentes de Doña Letizia. Felipe de Borbón será o novo Chefe de Estado já a partir de 19 de junho e todas as sondagens lhe atribuem níveis de popularidade invejáveis (ver caixa), sobretudo se forem comparados com os dos membros do Governo e os dirigentes dos dois principais partidos, o PP e os PSOE.
Na cerimónia de tomada de posse, Felipe deverá fazer saber aos seus compatriotas quais os seus planos para o futuro do reino que vai liderar, não com poderes executivos mas através de uma magistratura de influência e disponibilizando os seus bons ofícios para lidar com os enormes desafios que se lhe colocam. A começar pela necessidade de recuperar a imagem de uma instituição que se viu nos últimos anos envolvida em demasiadas polémicas e escândalos, como ficou demonstrado no caso Nóos, em que a Infanta Cristina e o seu marido se habilitam a ser julgados por vários crimes fiscais, ou ainda pelos sucessivos affairs amorosos de Juan Carlos e a sua caça ao elefante no Botsuana. Todos eles foram decisivos para o ainda monarca ter abdicado e para que haja hoje gente a gritar slogans como “Felipe, quién te ha votado?”, ou que mais de 150 mil bascos tenham no domingo, 8, formado uma cadeia humana ao som de “Gure esku dago!” (“Está nas nossas mãos!”). E se Euskadi entende ser este o momento para discutir o “direito a decidir”, o mesmo se passa na Catalunha onde o principal movimento da região, a Convergencia i Unió, se encontra dividido entre o apoio tácito à monarquia e a eventual criação de um novo Estado independente e republicano, na sequência do referendo agendado para 9 de novembro. Aliás, os próprios socialistas do PSOE parecem estar à deriva em todo este debate, com o partido em busca de uma nova liderança e com muitas das suas federações a tomarem posições erráticas devido à estrondosa derrota nas europeias e à emergência do Podemos. Na Galiza, nas Baleares e em Valência, por exemplo, abundam as simpatias republicanas e há quem defenda, nos bastidores, que esta é uma oportunidade histórica para se reverem os fundamentos do regime, da Constituição e da democracia… Afinal de contas, Juan Carlos e a atual monarquia ainda são uma herança direta do homem que governou a Espanha com mão de ferro, entre 1936 e 1975. Como muitos analistas voltam agora a recordar, Francisco Franco, o “caudilho” e “generalíssimo”, morreu não sem antes sublinhar que “todo queda atado y bien atado”, referindo-se ao futuro do país e à forma como escolheu Juan Carlos.
Leonor, o peso de ser princesa
Talvez para não ser alvo de comparações com o que sucedeu com o seu pai há quase quatro décadas, o Príncipe das Astúrias não quer que a sessão solene para o entronizar como Felipe VI envolva quaisquer rituais ou vestígios franquistas. Juras só mesmo da Constituição de 1978 e nada de símbolos religiosos e muito menos a bênção da máxima autoridade da Igreja Católica no país, o cardeal Rouco Varela, um irredutível conservador para usarmos um eufemismo. Por outro lado, não haverá grande fausto nem altos dignitários estrangeiros, por vontade do novo monarca e por não existir, no país, a tradição de coroações à semelhança do que sucede no Reino Unido. O próprio Juan Carlos também não deverá comparecer à cerimónia de passagem de testemunho por não querer roubar protagonismo ao filho. Ele abdicou por isso mesmo e sabe que é chegado o momento de ocupar um lugar secundário e permanecer discretamente no Palácio da Zarzuela. Provavelmente sozinho. Felipe, Letizia e as duas filhas vão continuar no contíguo “Pavilhão do Príncipe”, e doña Sofia, a rainha de origem grega com quem Juan Carlos casou em 1962, deverá em breve anunciar a separação de ambos e passar largas temporadas no estrangeiro. Quanto às infantas Elena e Cristina, mantêm os títulos mas deixam de fazer parte daquilo que se denomina a “Família Real”. Ou seja, depois de 19 de junho, esta será constituída por apenas seis elementos: Juan Carlos, Sofia, Felipe, Letizia, Sofia e Leonor.
Esta última, atualmente com 8 anos, deixará de ser Infanta e torna-se-á automaticamente a princesa das Astúrias e primeira na linha de sucessão ao trono. Até atingir a idade adulta, não terá obrigações oficiais mas cumprirá um rigoroso e sofisticado plano educacional, compatível com o seu estatuto. Terá, por exemplo, de frequentar as academias militares dos três ramos das forças armadas. E de prosseguir os estudos de catalão – e talvez de iniciar os de idioma basco -, pois será um dia a rainha de um país plural, com várias nações e línguas. Isto para já não falar do inglês que aprende desde bebé com uma nanny britânica. Em rigor, ser princesa é algo que nem sempre se escolhe e quase nunca corre como nos contos de fadas. Por razões protocolares e de segurança, será ela uma das primeiras vítimas da abdicação do avô: o seu semianonimato vai desaparecer, passará a andar sempre rodeada de guarda-costas e fica impedida de viajar e de partilhar meios de transporte com o seu pai…