Manchetes sacadas à custa de crimes diversos: escutas telefónicas, subornos, pirataria informática, contratação de detetives privados, eventualmente traficando influências e obstruindo o trabalho da Justiça. Eis alguns dos contornos do escândalo que abala o Reino Unido e os jornais da Velha Albion que pertencem a Rupert Murdoch, um dos maiores magnatas de media do planeta. Um caso de consequências imprevisíveis, não só a nível mediático como político. Mais de 4 mil súbditos de Isabel II foram alvo de escutas e nem a família real escapou aos “métodos de investigação” dos tabloides detidos pelo octogenário nascido em Melbourne, na Austrália: atores, futebolistas, publicitários, governantes, figuras públicas em geral e até familiares de soldados mortos no Afeganistão e no Iraque se tornaram alvos fáceis dos repórteres sequiosos de exclusivos a qualquer preço. Como foi tudo isto possível? Devido à “enorme corrupção entre jornalismo e política promovida pela cultura Murdoch, nos dois lados do Atlântico”, escreveu, esta semana, na Newsweek, um repórter com pergaminhos, Carl Bernstein, cuja carreira ficou marcada pelo Watergate, o escândalo que culminou na demissão do Presidente americano Richard Nixon, em 1974.
A jornalista modelo
Mas comecemos com um exemplo desta cultura: Rebekah Brooks. Na adolescência, descobriu que tinha vocação para jornalista e, mal termina os estudos secundários em Cheshire, no Noroeste de Inglaterra, decide rumar a França, onde colabora com a L’Architecture d’aujourd’hui, uma revista parisiense de arquitetura. O trabalho não a deve ter entusiasmado e a jovem ruiva regressa ao seu país, para tentar a sua sorte em Londres. E até consegue emprego no “maior jornal do mundo”, o News of the World (NotW), semanário dominical fundado em 1843. Pormenor importante: ocupa o cargo de secretária, estava-se então em 1989. Mas ela depressa percebeu que o slogan desta publicação que chegou a vender 8 milhões de exemplares por edição devia ser levado muito a sério: “Queremos exclusivos, não queremos desculpas”. Em apenas 11 anos, cometeu a proeza de se tornar na mais jovem diretora de um jornal britânico – tinha 32 anos. Pelo meio, deu sobejas provas do que era capaz, em dois nobres géneros jornalísticos, a entrevista e a reportagem. Comecemos pelo último. Em 1994, disfarçou-se de empregada de limpeza para entrar na redação do Sunday Times, a fim de ter acesso às histórias picantes sobre o príncipe Carlos que o jornal iria publicar no dia seguinte. A incursão correu-lhe bem, tendo saído com um exemplar recém-impresso da edição para, depois, escrever, em tempo recorde, um texto no NotW, com base no jornal surripiado. No mesmo ano, garante uma conversa exclusiva com James Hewitt, na expectativa de o oficial britânico assumir o romance que tivera com a princesa Diana. No entanto, tenham-se em conta os preparativos de Rebekah: reservou uma suite de hotel e contratou uma equipa especial para “instalar aparelhos de escuta em vários vasos e na mobília”, revela, no seu livro de memórias, Piers Morgan, então diretor do NotW e agora um dos nomes de proa da CNN.
Terão sido estas práticas a justificar a meteórica carreira de Rebekah? A verdade é que ela tornou-se uma figura imprescindível para a família Murdoch. O seu desempenho à frente do News of the World e depois do The Sun, levaram o magnata a colocá-la num cargo de administração – conselheira delegada. Mas as notícias entretanto vindas a lume sobre esta mulher apontam-lhe uma outra peculiaridade: o talento para as relações públicas. Ou melhor, o talento para se bem relacionar com as figuras com poder. Basta pensar na sua privilegiada carteira de contactos, onde se incluem os três últimos primeiros-ministros do Reino Unido e respetivas famílias. David Cameron, por exemplo, é frequentador habitual da sua casa de campo, em Oxfordshire, no Sul do país. Antes, tinha já privado com Gordon Brown, que agora se diz “chocado” com as escutas e os métodos dos jornais de Murdoch. Uma reação compreensível mas estranha, vinda de alguém que, segundo a edição do The Guardian da última terça-feira, 12, foi informado pela própria Rebekah Brooks, em 2006, que o The Sun iria tornar pública a grave doença – fibrose cística – de James Fraser Brown, um dos filhos do ex-governante.
Murdoch, o mundo desfeito a seus pés?
A promiscuidade entre os tabloides e os líderes britânicos parece ser um problema de longa data e, no caso de Rupert Murdoch, vem de longe a sua capacidade para vender muitos jornais e influenciar decisivamente a vida política. A exemplo do que fez, no final do século XIX, William Randolph Hearst, personagem imortalizada por Orson Welles em Citizen Cane. É por isso que também o acusam de fazer e desfazer primeiros-ministros. Em 1987, as sondagens diziam ser possível a Neil Kinnock, então o líder dos Trabalhistas, desalojar Margaret Thatcher do número 10 de Downing Street. Mas The Sun encarregou-se de fazer campanha em prol dos conservadores e numa delas foi muito claro: “Se ganhar Kinnock, o último a abandonar a Grã-Bretanha que apague as luzes.” Resultado: a Dama de Ferro voltou a impor-se nas urnas e os conservadores permaneceram no poder até 1997. Nessa data, para espanto geral, The Sun manifesta o seu apoio público ao jovem líder dos trabalhistas. Tony Blair chega ao poder e as más línguas alegam que o novo primeiro-ministro, antes de ser eleito, aceitou um convite de Murdoch para uma viagem de iate, ao largo da Austrália, durante a qual o magnata lhe arranca a promessa de acabar com o monopólio da BBC e o leva a garantir que não interferirá nos negócios televisivos da News Corporation.
Atualmente, Murdoch tem razões para estar preocupado. O caso das escutas pode comprometer as suas intenções de adquirir o controlo a 100% da BSkyB, a operadora de TV por satélite mais lucrativa do Reino Unido. O Governo de Londres preparava-se para lhe fazer a vontade a troco de 10 mil milhões de euros, mas as revelações bombásticas dos últimos dias fizeram-no recuar. Pior. O vice-primeiro-ministro, Nick Clegg, aconselhou Murdoch a desistir do negócio e ameaçou colocar o seu Partido Liberal ao lado dos trabalhistas, numa eventual moção parlamentar para impedir que o magnata aumente o seu capital de 39% na BSkyB. Como se não bastasse, alguns dos principais protagonistas deste escândalo já começaram a prestar contas aos deputados, em Westminster. Na passada terça-feira, 12, um dos visados foi Andy Hayman, o oficial da Scotland Yard que conduziu a investigação ao News Of the World, na sequência das escutas realizadas ao príncipe William, em 2005. Andy Hayman concluiu não haver indícios de escutas generalizadas, ordenou o fim do processo e, pouco tempo depois, abandonou a Scotland Yard para se tornar colunista do The Times, de Rupert Murdoch. Mas é bem provável que Murdoch, o seu filho James e Rebekah Brooks tenham igualmente de se explicar em Westminster. Afinal, as ações da News Corporation não param de baixar, as indemnizações podem ascender a dezenas de milhões de euros e multiplicam-se as grandes empresas a cancelar contratos publicitários com o grupo. Aliás, a própria Igreja Anglicana ameaça fazer o mesmo, deixando de pagar os 4 milhões de euros em anúncios colocados no The Sun e demais títulos do grupo…