A luz da manhã entrava pelo escritório em São Francisco e iluminava um Tiago Paiva genuinamente feliz com a informação que estava prestes a confirmar à VISÃO: a Talkdesk é o mais recente “unicórnio” fundado por um português, ao garantir “uma avaliação de 1 225 milhões de dólares”, na última ronda de investimento, em que encaixou 100 milhões de dólares. Junta-se, desta forma, ao restrito grupo de startups avaliado em mais de mil milhões de dólares e posiciona Portugal no mapa do empreendedorismo mundial. É que, só em 2018, houve duas companhias com mão portuguesa a garantirem a entrada nesta espécie de elite dos empreendedores (a OutSystems e a Talkdesk), e outra a marcar presença na Bolsa nova-iorquina: a Farfetch, que foi também o primeiro unicórnio português, ainda em 2015 (ver caixa). Este pode parecer um feito pequeno, mas é significativo, tendo em conta a dimensão do mercado português. De acordo com a CB Insights, empresa que segue o rasto dos unicórnios a nível mundial, Espanha não tem qualquer empresa deste tipo, enquanto França conta com duas. A China e os EUA são, sem surpresa, os países que apresentam maior número de startups neste patamar de avaliação.
A verdade é que a Talkdesk, que fornece serviços de call center alojados na cloud (nuvem), é uma empresa de direito norte-americano, embora tenha sido fundada por dois portugueses: Tiago Paiva, atual presidente-executivo (CEO), e Cristina Fonseca (que, no início de 2016, decidiu abraçar outros projetos). Com escritórios em São Francisco, em Lisboa e no Porto, prepara-se também para abrir um polo em Londres, onde conta “contratar 50 pessoas durante os próximos 12 meses”. Atualmente já são mais de 400 os colaboradores da Talkdesk, mas esse número deverá mais do que duplicar até 2020, adiantam Paiva e o diretor-geral Marco Costa, que se juntou à conversa com a VISÃO. Essa é uma das razões pelas quais se tornou fundamental o investimento garantido agora pela nova-iorquina Viking Global – que entrou com mais de 90% do capital recebido – e pela DFJ – que reforça assim a sua posição na companhia. “Há três anos, levantámos 24 milhões de dólares e conseguimos fazer com que a empresa crescesse para 400 pessoas. E há três meses, chegámos à conclusão de que temos feito isto com pouco dinheiro, mas temos crescido muito. Só que mais dinheiro permite-nos contratar mais pessoas, estar mais nas notícias e fazer a Talkdesk crescer ainda mais rápido”, explica Paiva. “As nossas receitas aumentaram dez vezes em três anos – e essa é a principal razão para sermos um unicórnio”, esclarece ainda, embora não queira partilhar os valores referentes à faturação. Porém, as contas não são complicadas: em 2016, um dos principais investidores da empresa revelou, em entrevista, que a Talkdesk faturara 10 milhões de dólares em 2014 – o primeiro ano em que vendera os seus serviços. Se as receitas aumentaram dez vezes em três anos, a Talkdesk estará, seguramente, a faturar mais de 100 milhões de dólares. Com seis propostas em cima da mesa – foram contactados oito investidores –, a escolha pela Viking Global prendeu-se sobretudo num aspeto: “Ter bastante experiência em levar empresas à Bolsa, e esse é um dos nossos objetivos.” Além de ser “um investidor de que nós gostamos, de ter proposto termos de que gostamos e a evaluation (avaliação) de que também gostamos…” A conversa, feita através de videochamada, foi mesmo assim, com palavras em inglês a entrecortar o português das frases. “Às vezes, parece que já não sei falar”, atira o responsável, com uma gargalhada, antes de admitir que acredita que a Talkdesk estará preparada para entrar na Bolsa nos próximos dois anos. No entanto, não tem pressa e prefere, por isso mesmo, não se comprometer com datas.
Mas o que é a Talkdesk?
Apesar de o mercado e de os investidores não terem dúvidas em relação às capacidades da Talkdesk, são muitas as pessoas que ainda não entendem exatamente o que este serviço de call center difere dos tradicionais – e o que faz com que o retorno do investimento dos clientes ande em redor dos 346 por cento. “Os meus pais também ainda não percebem bem o que eu faço”, admite, com bom humor, o CEO da empresa antes de explicar: “Para simplificar, imagine que liga para o grupo Avillez [que anunciou recentemente ser cliente da Talksdesk] para fazer uma reserva. Se já for cliente do grupo, a pessoa que está a atender vai saber quem é que está a ligar, que jantou no Mini Bar e no Belcanto, do que gostou e o que pediu. O que nós garantimos é, simplesmente, que a interação entre uma empresa e um particular seja muito melhor do que aquilo a que estamos habituados.” Esse rastreio de informação é possível devido ao software desenvolvido pela Talkdesk e ao recurso à Inteligência Artificial (AI). “Nós só trabalhamos o software, e o que fazemos é com que toda a informação do cliente seja mostrada ao agente ou à empresa. A ideia é simplesmente que tratem melhor de si”, remata. Além disso, a Talkdesk consegue ainda que quem atende o telefone seja a pessoa mais adequada ao perfil do cliente que está a ligar, o que aumenta a probabilidade de este ter uma boa experiência. “E temos tanto software que, quando a pessoa faz a chamada, muitas vezes já sabemos qual é o problema dela.” E exemplifica: “Por exemplo, está numa aplicação móvel a tentar marcar um quarto de hotel e aquilo não funciona. Quando liga para a Talkdesk, o agente do outro lado sabe que está a tentar marcar um quarto e que houve um erro. Portanto, ele já tem conhecimento do problema antes de lho dizer!” O facto de ter escritórios nos EUA e em Portugal, separados por uma diferença de 8 horas, faz também com que a Talkdesk consiga estar disponível praticamente durante 24 horas por dia, para resolver qualquer questão que surja.
O serviço prestado pela empresa de Tiago Paiva tem, no entanto, outra característica que lhe permitiu crescer tão rápido e com recurso a pouco dinheiro: o facto de não precisar de dispositivos físicos, além de um computador, para funcionar. Não há telefones na secretária, servidores, cabos ou outro tipo de equipamento, por regra bastante dispendioso. Todo o processo é gerido através da internet, e a informação fica alojada na cloud. “Nós não inventámos a roda, certo?”, apressa-se a dizer. “Já houve umas 100 talkdesks antes da Talkdesk, e muitas empresas tentaram fazer o que nós fazemos.” Porque não resultaram? “Acho que é a forma como nós impulsionamos as coisas. Aqui não aceitamos não conseguir fazer algo. Não há impossíveis. E quando perdemos um negócio – e perdemos, naturalmente –, tentamos entender porque o perdemos e garantimos que no próximo tal não acontecerá e que nós conseguimos melhorar. E eu acho mesmo que é isso que nos distingue das outras empresas.” Os elogios aos recursos humanos da Talkdesk são, aliás, uma constante durante a conversa com a VISÃO. “As pessoas estão todas aqui a fazer all in”, que é como quem diz, para dar tudo por tudo. “Temos todos a certeza de que vamos criar uma grande empresa – e só uma questão de tempo, certo?”
A avaliação dos mil milhões de dólares não retira, ao gestor de 31 anos, a simplicidade com que fala desde que criou o projeto, nem tão-pouco o faz sonhar demasiado alto. “Está tudo na mesma”, garante o engenheiro informático. “Continuo só a trabalhar, e não tenho planos de mudar isso”, afiança à VISÃO. “O Tiago é o tipo de pessoa que pode construir uma empresa multimilionária”, afirmava, no início de 2016, Jason Lemkin, da Storm Ventures, o principal investidor da Talkdesk, citado pela Forbes Portugal. A Storm Ventures apostou na empresa ainda na sua fase de constituição porque, revelou Lemkin à mesma publicação, Tiago Paiva, aos 24 anos, era melhor do que Lemkin. “Apesar de esta ser a sua primeira empresa, Tiago tinha uma visão da indústria, a motivação, o compromisso e a visão do futuro” necessários. Passaram pouco mais de dois anos para que estas palavras se revelassem certeiras.
“Sonho americano”
Ainda que esteja a viver uma espécie de “sonho americano”, a verdade é que Paiva acabou em São Francisco praticamente por acaso. No final do curso superior – licenciou-se no Instituto Superior Técnico, tal como a cofundadora Cristina Fonseca –, os dois engenheiros só queriam ganhar um computador portátil. Candidataram-se a um concurso de uma empresa norte-americana que o oferecia como primeiro prémio e os dois foram chamados aos EUA para apresentarem aquela que seria a ideia-base da Talkdesk. Um dos elementos do júri gostou tanto da proposta que os convidou para a desenvolverem na sua incubadora, na Califórnia. Receberam, para isso, 50 mil dólares – e ganharam o portátil, também. Tiago Paiva foi para São Francisco e nunca mais voltou a viver em Portugal.
Os primeiros anos foram particularmente difíceis e implicaram viver com pouco dinheiro e com praticamente nenhuns colaboradores. Foram precisos três anos para que a Talkdesk passasse de uma ideia e de muita programação a um serviço vendável, mas assim que chegou ao mercado conquistou clientes de renome. Hoje, na sua carteira contam-se nomes como a Farfetch, a Dropbox, a IBM ou a Glintt. Para continuar a crescer desta forma, acredita o CEO da companhia, é preciso apenas “trabalhar, contratar mais pessoas muito, muito boas” e alimentar sempre a cultura de sucesso da companhia. E daí haver uma grande mais-valia em ser uma empresa de direito norte-americano: o acesso a talento com muita experiência. “Portugal tem muito conhecimento, mas não temos assim tantas pessoas. Aqui temos muito mais pessoas com conhecimento, que sabem como desenvolver uma empresa, como crescer em marketing, como aumentar as vendas… nós contratamos pessoas que já fizeram isto há dez ou 15 anos. E essa é a grande vantagem; essa e também ter acesso ao dinheiro – às pessoas que encontramos nesta cidade, aos investidores. É algo que dificilmente encontramos em Portugal”, adianta. Com a entrada da Viking Global no capital, a Talkdesk garantiu um investimento acumulado de 124 milhões de dólares, em quatro rondas de financiamento, desde a sua criação. Em jeito de comparação, a Farfetch recebeu no mesmo período de tempo 701 milhões de dólares em sete rondas de financiamento.
A bênção do pouco dinheiro
Para Tiago Paiva, ter tido pouco dinheiro no início da atividade foi “uma das melhores coisas que” aconteceu. “Tínhamos de fazer dinheiro. Não havia a hipótese de usar dinheiro de investidores, de recorrer a outro dinheiro… não tínhamos. Quando tens um problema, é quando arranjas as melhores soluções. E não tínhamos opção. Só havia dois caminhos: ou não fazíamos nada, e a empresa fechava, ou tínhamos de arranjar maneira de criar um produto e começar a fazer dinheiro”, relativiza.
Apesar de ser nos EUA que está o mercado, o acesso ao capital e a maioria do talento, a verdade é que a Investigação e Desenvolvimento (I&D) da Talkdesk está concentrada em Portugal, e é aqui que deverá ser feita grande parte do investimento com o dinheiro recentemente angariado. Os cerca de 200 engenheiros da empresa estão todos sediados em Portugal, e é nas universidades portuguesas que estes deverão continuar a ser recrutados nos próximos tempos. “Em setembro, começaram a trabalhar connosco 20 recém-licenciados” – selecionados na academia que a Talkdesk criou (The Tech Dojo Office) e agora num programa de mentoria e de formação – que, esperam os responsáveis, se vão tornar “profissionais muito produtivos” e valiosos.
“Queremos manter toda a engenharia em Portugal e fazer o crescimento a partir daí”, garantiu ainda Marco Costa, antes de revelar que faz parte do plano estratégico da empresa ter mil engenheiros a trabalharem até 2020. Se todos eles vão ser recrutados no País é algo difícil de dizer, uma vez que atualmente a procura por licenciados em Engenharia já é bastante superior à oferta. O quase certo é que, nessa altura, a Talkdesk já estará a apontar para uma nuvem diferente daquela em que pousou este unicórnio: se as palavras de Paiva se concretizarem, com os mil engenheiros também poderá chegar o tempo certo para saltar para o mercado de capitais. E aí sim, os responsáveis pelo projeto dificilmente conseguirão evitar ficar com a cabeça nas nuvens.
ENTREVISTA: “O plano é investir e crescer”
O presidente-executivo da Talkdesk já pensa no mercado de capitais, mas garante que vai esperar pela altura certa para dispersar o capital da empresa
Aos 31 anos, Tiago Paiva é o terceiro gestor português a garantir à sua startup uma valorização de mil milhões de dólares, e já foi várias vezes distinguido como um dos mais promissores empresários da sua geração. Depois de ter sido destacado pela Forbes na lista dos “30 under 30”, em 2016, foi apontado como o 24º melhor CEO do mundo em empresas de SaaS (Software as a Service), em agosto deste ano. Em Portugal, é também o mais novo a conseguir levar uma empresa a esta avaliação.
Está a preparar a Talkdesk para um dia entrar em Bolsa… É um problema se não acontecer em breve?
Não é um problema. Nós estamos a esperar pelo momento certo e, quando chegar a altura, fazemos isso. O que é engraçado é que eu criei a Talkdesk há sete anos, mas só começámos a vender há quatro. Por isso, conseguirmos ir de cinco pessoas para 400 em quatro anos, e ir de uma avaliação de zero para mil milhões em quatro anos… Estamos todos mesmo muito contentes.
A entrada da Farfetch em Bolsa não aguça o apetite?
A Farfetch entrou na altura certa, porque a Bolsa realmente está muito boa agora. Nós não sabemos como as coisas vão estar daqui a dois ou três anos, mas digamos que se tudo ajudasse, creio que estaríamos prontos para ir para a Bolsa nessa altura. Se tudo funcionar bem, se nada mudar muito, provavelmente será essa a data. Mas também pode ser daqui a quatro ou cinco ou seis anos.
Pensa em sair da empresa depois de conseguir colocá-la em Bolsa?
Neste momento, o plano é investir dinheiro e continuar a fazer a empresa crescer. E depois logo se vê. Eu gosto muito de trabalhar. Claro que tenho sempre a opção de vender a empresa, de ter alguém a substituir-me. Mas se eu pudesse escolher, continuaria a fazer isto. Portanto, não me vejo a parar de trabalhar.
Há dois anos, deu uma entrevista em que dizia que não tinha nada de seu – exceto o seu cão – e só trabalhava. O que mudou?
Está tudo na mesma: nem o cão tenho! Ainda moro no mesmo sítio, faço as mesmas coisas. Dois anos depois, nada mudou. Continuo só a trabalhar, e não tenho planos para mudar isso. Logo decidirei.
A Talkdesk continuará a desenvolver novos serviços, sobretudo agora com este reforço de investimento? O que pode adiantar-nos sobre isso?
Nós garantimos que a interação de empresas com clientes é de sucesso através de software, através de Inteligência Artificial. Portanto, vamos apostar muito em Inteligência Artificial. Não quero entrar em muitos detalhes porque no próximo mês faremos a nossa conferência anual, com clientes e parceiros, e é lá que vamos anunciar os planos do futuro, sobre serviços e produtos. Mas posso dizer que esse é o grande tópico. E estamos a fazer um grande investimento em Portugal, nessa área, também – se nos aparecerem 200 pessoas nessa área, nós contratamos. Queremos mesmo investir!
O que distingue a Talkdesk dos seus concorrentes?
Sei que parece simples, mas repito: as pessoas. Criámos uma cultura na empresa que faz do cliente o ponto mais importante do nosso trabalho. Desde os programadores ao CEO, toda a gente sabe disso. Se um cliente tem um problema, é all hands on deck!
Os outros unicórnios nacionais
A Farfetch foi o primeiro unicórnio com sotaque português, em 2015. A OutSystems conseguiu o mesmo feito três anos depois. O unicórnio já foi mais raro nesta ponta da Europa
Plataforma de luxo
A Farfetch nasceu em 2008, pelas mãos de José Neves, que aos 19 anos já tinha criado uma linha de calçado. Nascido em Guimarães, decidiu, então, trocar Portugal pelo Reino Unido e fazer a empresa crescer em plena crise financeira. A empresa de comércio digital, especializada em retalho de luxo, com sede em Londres, cedo se destacou e começou a fazer concorrência à Net-a-Porter, a primeira empresa do género. Porém, o facto de não lidar com stock – a Farfetch só faz a ligação entre clientes e pequenas boutiques de luxo ao redor do mundo – deu-lhe sempre uma vantagem competitiva. O trunfo de ter conseguido conquistar a fundadora da Net-a-Porter e de a integrar na sua equipa de gestão marcou o ponto de viragem da empresa: durante três anos foi o único unicórnio português, título que partilharia com a OutSystems, durante cerca de três meses. Deixou de ter direito a ser comparada com o animal imaginário, quando passou para o patamar seguinte e se tornou a primeira empresa portuguesa a cotar no Nasdaq, o índice tecnológico da Bolsa de Nova Iorque. Está a valer praticamente oito mil milhões de dólares em Bolsa.
Programar sem programar
Dificilmente pode ser chamada startup, visto que foi criada em 2001. Porém, como mantém a jovialidade, a OutSystems, fundada por Paulo Rosado, foi mesmo considerada o segundo unicórnio português, ao garantir, em junho passado, um investimento superior a 300 milhões de euros, o que avaliou a empresa em mais de mil milhões. Esta tecnológica permite, resumidamente, desenvolver aplicações de forma mais rápida e fácil, sem que seja preciso recorrer a grandes equipas de programação. Estima-se que terá um volume de negócios a rondar os 85 milhões de euros e, segundo fonte oficial da empresa citada pelo jornal Expresso, “cresce mais de 70% anualmente”. A OutSystems tem, atualmente, quase 800 colaboradores e marca presença em mais de 50 países em todo o mundo, tendo estado a apostar significativamente nos EUA, nos últimos tempos.