Negócios da China é um relato fiel de como a chegada da troika e a falta de capital em Portugal atiraram, para os bolsos de chineses, angolanos e franceses, algumas das maiores e melhores empresas portuguesas que, em conjunto, valem cerca de 20% do PIB português – incluindo empresas que geram rendas fixas como a ANA, a REN ou mesmo a EDP.
No livro, editado pelo Oficina do Livro, Anabela Campos e Isabel Vicente, jornalistas do caderno de Economia do Expresso, descrevem como Portugal abriu mão dos centros de decisão e transferiu para o exterior empresas de bandeira fortemente descapitalizadas, e como foi montado o assalto a alguns dos maiores bancos e empresas nacionais – como a PT, a Cimpor, o GES/BES, o BPN. Estão lá também alguns episódios caricatos destes anos de “chumbo”, como aquele em que os responsáveis da troika, confrontados com o tamanho dos créditos de alguns bancos, perguntaram: “O que é o Berardo?”, sem saberem se era uma pessoa ou uma empresa…
O livro, que já se encontra à venda, reflete como um espelho as preocupações, angústias, obsessões e perplexidades das suas autoras e, sobretudo, uma certa maneira de (ainda) estar no jornalismo económico, como assinala o jornalista Nicolau Santos no prefácio da obra. A VISÃO publica um extrato do primeiro capítulo:
“Vender 20% do PIB e acelerar as privatizações”
“Em meia dúzia de anos, foram‑se os campeões nacionais, os dividendos e os centros de decisão – temas tão caros às elites económicas e políticas na viragem do século. Uma situação inimaginável quando, nos eufóricos anos 90, Portugal sonhou criar grupos fortes e empresas multinacionais, que pudessem levar o nome do país mais longe.
Foi na viragem do século que os grandes grupos portugueses ganharam forma e muitos começaram a traçar o caminho para se tornarem multinacionais. Agora, parte disso perdeu‑se. A Troika deu o empurrão final numa trajetória que a crise financeira já vinha desenhando – impôs aos bancos intervencionados que vendessem todas as participações que tinham em negócios fora do setor bancário e fomentou as privatizações para que pudessem ser arrecadadas receitas para aplicar no combate ao défice. Os bancos e o governo obedeceram. E até 2015 o Estado arrecadou mais de 9,5 mil milhões de euros, praticamente o dobro da meta estabelecida no plano de ajustamento desenhado pelo BCE, o FMI e a Comissão Europeia. O governo aproveitou para retirar o Estado do maior número de empresas possível. Portugal, uma pequena economia aberta, preparava‑se para ser uma das mais liberais do mundo.
A abertura e conclusão de processos de privatização e concessão foi alucinante nos últimos meses do governo de Pedro Passos Coelho: TAP, Metro de Lisboa e Carris passaram para mãos privadas no mesmo mês, junho de 2015. Antes já tinha sido privatizado a totalidade do capital da EDP, a REN, os CTT, e a EGF. Em pleno agosto, é anunciada a concessão por ajuste direto, numa operação relâmpago, do Metro do Porto e da Sociedade de Transportes Públicos do Porto (STPC) – um processo polémico e apressado, feito à revelia da autarquia do Porto, liderada por Rui Moreira. O autarca diz que a operação teve falta de transparência.
Sérgio Monteiro, o então secretário de Estado dos Transportes e Comunicações, foi o homem por quem estas últimas operações passaram. Estava imparável nos últimos meses do governo. Tinha uma missão quase impossível, vender a TAP e concessionar os transportes públicos, dois dossiês difíceis de fechar. As greves fizeram sentir‑se na TAP e no Metro de Lisboa. Houve um movimento de cidadãos a lutar contra a venda da companhia aérea e a avançar inclusive com providências cautelares. Sem sucesso. Contra ventos e marés, Sérgio Monteiro, o quadro que o governo tinha ido buscar ao Caixa Banco de Investimento, onde tinha sido um dos directores responsáveis pela montagem de algumas das maiores parcerias público privadas feitas no país, conseguiu fazer o que pretendia o governo, e alienou 61 por cento da TAP. A venda da companhia aérea foi uma das mais contestadas e atribuladas e o processo haveria de ter reveses, como veremos mais à frente.
Ficava assim concluída a maior onda de vendas de que há memória. Deixou praticamente de haver grandes empresas públicas ou com capital público, um caso raro na Europa. Os países mais poderosos da Zona Euro, Alemanha e França, trilham um caminho diferente e apesar de terem privatizado muito na primeira década do século xxi, continuam a ter o Estado presente em várias áreas (…) A estes países Bruxelas não impõe tão facilmente as suas regras. São economias fortes, algumas delas contribuintes líquidas para o orçamento comunitário e com poder nos corredores da Comissão Europeia. O governo português de Pedro Passos Coelho fez quase o oposto. A lógica era tirar o Estado das empresas e quanto mais depressa melhor (…).
O Estado vendeu, desde a crise de 2008, mais 37,5 mil milhões de euros de ativos, à volta de 20 por cento do Produto Interno Bruto (PIB). Algumas das empresas alienadas são monopólios naturais, longamente financiados pelos portugueses, como é o caso da ANA, da REN e, de certa forma, da EDP. Quando a Troika chegou, as empresas estavam excessivamente endividadas e os empresários, muitos deles, afogados em dívidas. Sem capital e o acesso a ele limitado – a banca estava praticamente impedida de dar crédito –, havia que iniciar um histórico processo de vendas. O país não tinha dinheiro, os juros estavam altíssimos e era preciso urgentemente que alguém pagasse as dívidas dos acionistas portugueses à banca. Os novos acionistas eram fundamentais para trazer sangue fresco às empresas, mas também para salvar os bancos das impagáveis dívidas dos seus acionistas e dos grandes clientes.
«O que é o Berardo?», perguntavam os técnicos enviados pela Troika quando, em 2011, passavam as contas dos bancos a pente fino, tal era a dimensão da sua dívida. José Berardo, com um crédito de mil milhões de euros para compra de ações do BCP, era apenas a ponta do icebergue; como ele, havia dezenas de grandes investidores e empresários com créditos de enorme dimensão e garantias frágeis. Milhões que nunca iriam ser pagos e iriam provocar nas contas dos bancos «buracos» de centenas de milhões de euros, as famosas imparidades. Perdas que acabaram por ser pagas pelos contribuintes, quando os bancos tiveram de ser salvos. Sinais dos tempos, os bancos tinham embriagado o país com crédito, e a euforia das últimas décadas estava a mostrar o lado B.
«A descapitalização das grandes empresas está associada ao extraordinário endividamento a que nos conduziram as grandes políticas económicas desde meados dos anos de 1990: cada trabalhador português no ativo deve cerca de 70 mil euros. E o reverso da medalha é a redução drástica da poupança nacional nas últimas duas décadas. Infelizmente, ninguém fala disso», afirma Abel Mateus, economista, ex‑presidente da Autoridade da Concorrência, atualmente administrador do Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (BERD). A injeção de investimento externo, em empresas ávidas de capital, é positivo. Sem isso, muitas não sobreviveriam. Há, porém, casos de empresas que na voragem deste processo foram desmanteladas – a urgência de vender falou mais alto do que o destino final das companhias. A Cimpor foi partida ao meio e dividida entre dois grandes grupos brasileiros e o negócio em Portugal encolheu vertiginosamente. Aquela que foi a maior cimenteira portuguesa, na prática, desapareceu. A PT, na sequência de uma desastrosa fusão com a brasileira Oi, foi amputada das suas operações em África e no Brasil e transformou‑se numa multinacional franco‑israelita. E admite‑se já que o novo dono, a Altice, venha a desfazer‑se de áreas de negócio e reduza substancialmente o número de quadros de topo e de trabalhadores. A urgência e a necessidade de agir rapidamente deixaram entregues à sua sorte duas grandes empresas que se distinguiam nos seus setores internacionalmente e eram motivo de orgulho nacional. Face à PT, na verdade, politicamente não havia muito a fazer, o processo era demasiado embrulhado e não havia grande hipótese de investidores portugueses resgatarem a empresa, comprando‑a. A Cimpor foi outra questão, como veremos mais à frente.”