São de esquerda, de direita, do centro; do Benfica, do Sporting, do Porto; católicos, evangélicos e ateus; patrões, empregados e desempregados; querem partir tudo e não querem partir nada.
Só existe uma coisa a unir as 800 pessoas que se juntaram na Associação dos Indignados e Enganados do Papel Comercial (AIEPC): investiram o seu dinheiro em papel comercial do Banco Espírito Santo e estão em risco de perder as “poupanças de uma vida”, como lhe chamam.
Por isso os vemos, praticamente todas as semanas, na rua, a protestar ou a invadir agências bancárias do Novo Banco, com cartazes de aspeto amador, feitos em casa, e de megafone na mão. Dizem que não arredam pé enquanto não tiverem o seu dinheiro de volta. E preparam um verão quente, com o reforço dos emigrantes lesados que hão de vir.
Começa esta quinta-feira, 2, frente ao Novo Banco, em Lisboa, com nova manifestação. Continua no dia 10 de agosto, também em Lisboa, na Avenida da Liberdade, um protesto que está a ser preparado com cautela. “Os emigrantes não estão a libertar adrenalina semanalmente como nós. Além disso, são pessoas que foram obrigadas a sair do País para terem uma vida melhor, privaram-se muito mais do que nós, com dois ou três empregos… e agora onde estão as suas poupanças? ?O perigo é gigante”, avisa Ricardo Ângelo, o presidente da AIEPC.
A seguir, vem a campanha eleitoral para as eleições legislativas, com a promessa de uma marcação cerrada à coligação de Governo. Para “desgosto” de alguns sociais-democratas da associação, mas que acabam por entender que valores mais altos se levantam… os do seu dinheiro. Assim, onde houver comício, haverá indignados. Certeza só têm uma: “A luta só acaba quando o dinheiro for devolvido a 100 por cento.”
E quanto mais a situação se arrasta, mais lesados se juntam ao movimento, que ganhou nas ruas a sua grande notoriedade. Mas, afinal, como é que isto começou? E quem está por detrás destes protestos?
Promessas em papel molhado
Mesmo depois da queda do Banco Espírito Santo e da separação entre o “banco bom” e o “banco mau”, os 2 508 clientes não institucionais, do retalho, que investiram no papel comercial estavam descansados da vida. Logo em agosto de 2014, os clientes que contactavam o Banco de Portugal sobre o assunto, recebiam como resposta que “a provisão que acautela o risco relacionado com o reembolso aos clientes do retalho do BES de papel comercial do GES [Grupo Espírito Santo] foi transferida para o Novo Banco. Compete ao Novo Banco decidir sobre o reembolso do papel comercial do GES”.
Já no site do Novo Banco estava escrito que “o papel comercial emitido pela ESI [Espírito Santo International] e Rio Forte transitam para o Novo Banco, e este mantém a intenção de assegurar o reembolso, na maturidade, do capital investido pelos seus clientes não institucionais junto das redes comerciais do Grupo BES de então”.
Até aí tudo bem. Mas, em janeiro deste ano, esta informação desapareceu do site do Novo Banco e Ricardo Ângelo, um médico dentista de 34 anos, ficou de pé atrás. Trocava impressões, com outros clientes do BES, no fórum do Jornal de Negócios Caldeirão de Bolsa, e combinaram uma primeira reunião num apartamento que Ricardo tem em Matosinhos. Mas, como se juntaram mais de 60 pessoas, acabaram por ir para um hotel.
Nesse encontro fundador, o dentista, residente em Viseu, foi nomeado presidente. E o grupo começou a sair à rua, conforme decorriam as audições sobre o BES no Parlamento. Ali ficou a saber-se que a provisão, de quase 700 milhões de euros, para reembolsar os clientes do papel comercial tinha ficado, afinal, no “banco mau”, que está falido.
E Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal, começou a mostrar-se irredutível na posição de não permitir que os lesados recebam o seu investimento. “Quando as pessoas assumem riscos, têm de perceber que o risco é inerente à aplicação financeira”, disse há tempos no Parlamento.
O Banco de Portugal teme que, devolvendo o dinheiro aos clientes não institucionais, esteja a abrir um precedente jurídico, que leve os outros a exigir também o reembolso. Só a Portugal Telecom tem quase 900 milhões de euros em papel comercial da Rioforte. Para Carlos Costa, têm de ser as entidades emitentes (que estão em insolvência) a reembolsar os lesados.
Na rua ou no gabinete?
No total, há 2 508 lesados não institucionais do papel comercial, tendo investido, no seu conjunto, 550 milhões de euros. Destes, menos de 200 investiram mais de 500 mil euros e 60 aplicaram mais de um milhão de euros (entre eles o próprio Estado, que investiu seis milhões de euros em papel comercial através do Fundo de Apoio à Inovação, do Ministério do Ambiente).
A AIEPC (agora com uma direção, vice-presidentes, coordenadores regionais, assembleia-geral e conselho fiscal), representa cerca de 800 lesados, num total de €170 milhões de euros investidos. Apenas dois sócios da associação aplicaram mais de um milhão de euros, garante Ricardo Ângelo, mostrando que a esmagadora maioria “é gente que trabalhou toda uma vida para juntar 50 ou 100 mil euros e agora, sem o dinheiro, vive com pensões muito baixas”. Mais de 70% dos sócios da AIEPC tem mais de 65 anos.
Curiosamente, no núcleo duro da associação, há poucos cabelos brancos. Alguns estão em representação dos pais e até dos avós. A função deste grupo de duas dezenas de homens e mulheres, que encontramos na tarde de um domingo de junho, num hotel em Coimbra, é a de manter a união e conduzir a luta.
O tema do dia são os avisos de Marques Mendes, na noite anterior, na SIC. Dizia este antigo presidente do PSD, que os “lesados deviam mudar a sua estratégia porque o Estado e as autoridades não negoceiam com quem está na rua”.
O discurso duro dos manifestantes, frequentemente insultuoso e algumas vezes envolvendo ameaças de morte (sobretudo ao Novo Banco e ao Banco de Portugal) tem sido bastante criticado pela opinião pública.
Os excessos de linguagem estão agora entre as principais preocupações da AIEPC, numa altura em que a estratégia é a de iniciar uma fase de negociação. Mas não vai ser fácil. “Há fações que preferem ir para a rua partir tudo. E há fações que acham que temos rua a mais, que é preciso é conversar”, explica um dirigente.
Sair deste fio da navalha implica longas horas ao telefone com os associados mais ativos. Rui Alves, 61 anos, um reformado de Matosinhos, tem a sua estatística pessoal: “Mês de maio: 240 chamadas do meu telefone; a mais curta durou um minuto e a mais longa 1h25m. Há pessoas que precisam de desabafar e eu faço um bocadinho de psicólogo também”, conta. Rui tem como função angariar lesados na zona norte e levá-los para as manifestações.
As armas e o risco
Este núcleo duro emanou naturalmente do grupo de associados, conforme se iam conhecendo e se iam apercebendo das capacidades de cada um. O lisboeta João Salva, por exemplo, um engenheiro mecânico de 59 anos, é sempre ouvido com muito respeito, pelas suas opiniões sensatas. Está na associação desde a reunião fundadora e é considerado um estratega. É também o responsável pela logística da marcação das manifestações, fazendo a ponte com a polícia e com as autarquias.
Outro alfacinha, Nuno Lopes Pereira, de 44 anos, é diretor comercial numa empresa. Mas no encontro de Coimbra parece um economista experiente, desenhando cenários macroeconómicos para o futuro. “Não pensem que isto da Grécia não vai ter efeitos. Daqui a 5 anos, a inflação vai estar bem mais alta e as taxas de juro também”, avisa, numa previsão necessária para a elaboração de uma proposta, a apresentar ao Novo Banco e ao Banco de Portugal, de forma a que os lesados possam reaver o seu dinheiro, com juros, daqui a 2, 5 ou 10 anos.
“Querem 100% do capital e juro a 0%; ou querem 60% do capital e juro alavancado?”, exemplifica Nuno que, com meia dúzia de associados, prepara duas propostas diferentes para levar à assembleia-geral da AIEPC no próximo sábado, 4 de julho. Uma coisa está decidida: é urgente dar liquidez aos “velhotes que ficaram sem nada e têm uma reforma de 200 euros”.
Há quem olhe para o exemplo do BPP (Banco Privado Português), em que os investidores tiveram um final satisfatório: até aos 250 mil euros, recuperaram o seu capital na totalidade; acima disso, contentaram-se em receber 80% do seu dinheiro. Uma solução destas, por nível de investimento, não está fora de questão.
Chegou a hora de negociar, decide o núcleo duro em Coimbra. Mas continuarão a fazer barulho na rua. Paralelamente às manifestações de rua e, agora, à elaboração de propostas para negociação, os lesados e indignados contrataram o advogado Luís Miguel Henrique, com experiência neste tipo de ações. Foi ele quem liderou um grupo de lesados do BPP.
Para já, a estratégia destes pequenos investidores reunidos na AIEPC passa por processar funcionários do antigo BES, como os gestores de conta, diretores, diretores regionais, administradores e todos os quadros superiores que transitaram do BES para o Novo Banco. Acusam-nos de “burla qualificada” e as queixas-crime já se contam em 300.
Tem havido problemas entre os lesados e os agora funcionários do Novo Banco. A comissão de trabalhadores da instituição acusa os primeiros de violência, à porta das instalações, falando em “vestes rasgadas, empurrões, insultos e demais ameaças”.
Um fantasma a pairar
E Ricardo Salgado? Não é um alvo? Um dos dirigentes propõe, no encontro em Coimbra, que se vá a casa dele, fazer barulho à porta. “Isso é o que o Carlos Costa quer!”, responde-lhe outro. De facto, Ricardo Salgado já não é um número nesta equação – nada tem para oferecer aos lesados, nada pode fazer para lhes resolver o problema.
Assim, as atenções focam-se em Carlos Costa, Pedro Passos Coelho, Eduardo Stock da Cunha (presidente do Novo Banco) e até nos donos que se seguem – o “banco bom” que saiu do BES está em processo de venda. O Banco de Portugal recebeu três propostas vinculativas para a compra da instituição bancária.
A todos, associação já enviou cartas a avisar que não vai baixar os braços. A sua grande preocupação é separar o trigo do joio. Insiste que os seus associados estavam inscritos no BES como tendo um perfil conservador, ou seja, que apenas colocavam o dinheiro em depósitos a prazo, recusando os produtos de risco, e que confiaram cegamente no que os seus gestores de conta recomendavam. O papel comercial das empresas do Grupo Espírito Santo (a Rioforte, a ESI ou a Espírito Santo Property) era vendido como sendo um “produto do banco, uma espécie de depósito a prazo que pagava juros melhores”.
E por isso há quem perca a cabeça, na dificuldade de lidar com o sentimento de ter sido enganado. Ricardo Ângelo já recebeu um telefonema de um lesado a dizer que estava a sair de casa, com uma caçadeira, para ir matar o gestor de conta.
Estes desesperos, de gente que já não tem muito mais a perder, são geridos com “pinças”. A associação proíbe mesmo alguns associados de participar nas manifestações, uns por razões médicas, outros porque já tentaram ir armados… “Tem sido difícil dissuadir atitudes imponderadas”, desabafa Ricardo Ângelo, que se estreia no associativismo logo com o papel principal. Fala a língua do pobre e do rico, do jovem e do idoso e tem os ouvidos de todos.
Muitos deles estão a ir a manifestações pela primeira vez na vida. A associação, que cobra uma joia de 50 euros no ato da inscrição, gasta dinheiro apenas no aluguer de autocarros. Tudo o resto é trabalho voluntário e luta. Com um só objetivo: chegar àquele dinheiro, muitas vezes suado, que continua a aparecer nos seus extratos bancários, mas ao qual não têm acesso. E que parece cada vez mais inalcançável.
Números
2 508 – Número de lesados do papel comercial
8 mil – Número de lesados entre os emigrantes com papel comercial e outros produtos complexos como o Poupança Plus, Euro Aforro, Top Renda e EG Premium
€550 milhões – Investimento total dos lesados (com exceção das grandes empresas e fundos de investimento)
60 – Número de lesados que investiu mais de 1 milhão de euros
800 – Os sócios da Associação dos Indignados e Enganados do Papel Comercial
A caixa de Pandora
Para os lesados do papel comercial, o grande mau da fita é Carlos Costa, o governador do Banco de Portugal. E quase todo o discurso mais violento que se ouve nas manifestações é dirigido a ele. No Parlamento, Carlos Costa foi explicando a sua posição.
“É óbvio que me custa muito que alguém vá para a porta da minha casa chamar-me gatuno. Foi a pior coisa que me chamaram em toda a vida”, disse, garantindo que há casos de pessoas enganadas que o “emocionaram”. No entanto… “Se se abre uma caixa de Pandora, isto não tem limites, porque ninguém sabe qual o valor do papel comercial que anda por aí fora.
Vão ser os contribuintes a salvar a família Espírito Santo?”, perguntou. Curiosamente, corre o rumor de que a própria família Espírito Santo estará a vender o seu papel comercial ao “preço da chuva”. “Isso mesmo foi-nos dito numa reunião com o Banco de Portugal [BdP]”, afirma Ricardo Ângelo, presidente da associação dos indignados. Mas o BdP desmente. “O Banco de Portugal não poderia ter transmitido essa informação porque não a tem”, garante fonte oficial. A posição atual do Banco de Portugal é clara: apurar, de entre os 2 508 lesados, os que foram de facto enganados.
Esses serão credores diretos do BES, passarão à frente dos outros credores, e serão ressarcidos. Os outros – clientes do papel comercial cientes do produto de risco em que investiam – poderão tentar a sua sorte na justiça e, ao mesmo tempo, aguardar pela proposta comercial que o Novo Banco tarda em apresentar. Uma proposta que pode significar a perda de uma grande percentagem do dinheiro e a recuperação do restante num longo espaço de tempo.
A única condição que o BdP coloca é que essa proposta não tenha implicações negativas no rácio de capital e “seja geradora de valor para o banco”. Ora, isso é contraditório com a reivindicação dos lesados de recuperarem a totalidade do investimento. O atual impasse nesta situação deve-se em muito ao conflito que existe entre o BdP e a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, uma vez que a CMVM tem outro entendimento.
Para a instituição liderada por Carlos Tavares, a responsabilidade pelo reembolso transitou para o Novo Banco, ou seja, os lesados são credores do Novo Banco e não do falido BES. Por cima de tudo isto está o Banco Central Europeu. Numa carta enviada esta semana à associação dos indignados, o BCE coloca a batata quente nas mãos das “autoridades portuguesas”, descartando qualquer papel no processo de resolução do BES. No entanto, há tempos, o próprio BCE enviou um email ao Banco de Portugal, alertando para o facto de ser necessário ter conhecimento de uma eventual solução para o papel comercial, uma vez que está por afetar o rácio de capital do Novo Banco.