Walter Casagrande enfrentou a ditadura militar do Brasil, ao lado de Sócrates e dos restantes companheiros do Corinthians num grande movimento popular, sob ameaças de tortura e prisão, e por isso não entende que os capitães de equipa das principais seleções presentes no Mundial do Qatar tenham recuado na inteção de usar a braçadeira multicolorida, apenas porque a FIFA ameaçou sancioná-los disciplinarmente. Faltou-lhes personalidade e coragem, na opinião do ex-avançado brasileiro, campeão europeu pelo FC Porto em 1987.
“Se Maradona, Cantona, Gullit, Sócrates e eu jogássemos este Mundial, teríamos usado a braçadeira arco-íris”, dispara, numa entrevista ao diário espanhol El País, a partir do Qatar, onde se encontra ao serviço do jornal brasileiro Folha de São Paulo. A batata quente ficaria nas mãos de Gianni Infantino, presidente da FIFA, e não nas dos jogadores que decidissem protestar contra a discriminação de pessoas LGBTQIA+ no país organizador do Campeonato do Mundo. “A FIFA não poderia expulsar Neuer, Mbappé, Messi, Neymar… A ameaça de lhes mostrar um cartão amarelo é bluff.”
Reconhecido ativista, Casagrande, hoje com 59 anos, puxa dos galões perante a falta de desassombro da atual geração de futebolistas, chamando à conversa a famosa Democracia Corinthiana, o movimento criado pelos jogadores do clube brasileiro Corinthians, no início dos anos 1980, para contestar abertamente, e até na rua, a ditadura militar que governava o país.
Com o “professor” Sócrates à cabeça (o melhor jogador brasileiro daquela época) e aliados de peso como Wladimir e o próprio Casagrande, o balneário do Corinthians introduziu no clube um sistema de uma pessoa, um voto, democratizando quase todas as decisões, inclusive sobre contratações a fazer (também dispensaram os jogadores casados dos estágios antes dos jogos, por exemplo). Não tardaram a surgir mensagens políticas nas camisolas de jogo, com palavras de protesto contra a ditadura. Afinal, todo o movimento era uma forma de exigir democracia no Brasil.
“Durante a ditadura, a Democracia Corinthiana usava camisolas a pedir eleições gerais. Os militares mandaram-nos retirá-las e reunimos com o treinador e o presidente do clube. E o que fizemos nós? Fomos jogar com as camisolas da Democracia Corinthiana”, recorda Casagrande. “A polícia secreta identificou-nos, suportámos ameaças de prisão e de tortura sem visibilidade. Podiam ter-nos matado sem ninguém dar por isso”, rebobina, para acentuar a sua incompreensão face ao caminho seguido pelos capitães neste Mundial 2022. “Hoje, com as redes sociais, ameaçam-te e num segundo fica toda a gente a saber.”
A falta de amor
Nesta entrevista ao El País, Casagrande mostra-se crítico da realização do Mundial de futebol na península do Golfo Pérsico. “No Ocidente também se discrimina a mulher e existe raciscmo, homofobia e machismo, mas no Qatar é oficial”, aponta, para de seguida explanar a sua visão romântica do desporto-rei: “O mais importante num Mundial é que o povo do país organizador ame o futebol. Isso gere energia positiva que se multiplica com os adeptos que vêm de fora, mas não vejo isso nas ruas do Qatar. A grande maioria dos adeptos que viajam a um Mundial vai para se divertir, para se apaixonar. Procuram romances fugazes. Mas aqui no Qatar o amor é proibido. A realidade última da repressão dos gays e das mulheres é a proibição do amor. E quando proíbes o amor, que sentido tem o futebol?”
Sem medo das palavras, o ex-avançado brasileiro, contratado pelo FC Porto depois de ter representado a sua seleção no Mundial de 1986, no México, e que, muitos anos mais tarde, admitiria no programa de Jô Soares ter consumido droga ao longo da carreira, diz ainda ao El País não sentir empatia com os atuais craques da canarinha que declararam apoio à reeleição de Jair Bolsonaro, nas últimas presidenciais, das quais Lula da Silva acabou por sair vencedor.
“Bolsonaro é criminoso, homofóbico, racista, agressor de mulheres, está a acabar com a Amazónia. É absurdo que um jogador de futebol apoie este tipo. Mas Neymar, Thiago Silva e Dani Alves fizeram-no. Isto mudou a perceção de muita gente no Brasil. Como vais apaixonar-te por jogadores que apoiam um fascista?”, questiona, igual a si próprio, rebelde como sempre.