Ao longo de uma vida longa – que terminou a 3 de junho, aos 89 anos – Fernando Lima Bello ocupou, como mais nenhum português, todos os “postos” que podem ser preenchidos numa carreira olímpica: foi atleta em dois Jogos, chefe de missão noutro, presidente do Comité Olímpico de Portugal e ainda, durante mais de duas décadas, membro do seleto Comité Olímpico Internacional (cargo que, desde então, nunca mais voltou a ser ocupado por um português).
Engenheiro de profissão, Fernando Lima Bello foi sempre um olímpico na verdadeira aceção da palavra: com um sentido de independência bem vincado e com uma fidelidade à essência do desporto como fator de integração social.
Cruzei-me várias vezes com Fernando Lima Bello em Jogos Olímpicos, tendo assistido, por exemplo, a algo até agora irrepetível: a única vez, em toda a história dos Jogos Olímpicos, em que um português entregou uma medalha, no pódium, a outro português. Foi em setembro de 2000, em Sydney, quando Fernando Lima Bello “apostou” que o judoca Nuno Delgado era uma hipótese séria de medalha e, por isso, manifestou o interesse a ser ele a fazer a entrega dos prémios na categoria de -81 quilos da competição de judo, no centro de exposições de Darling Harbor.
Em vésperas da decisão do Comité Olímpico Internacional para a atribuição da sede dos próximos Jogos Olímpicos telefonei várias vezes a Fernando Lima Bello – o único português no COI – a tentar perceber o sentido do seu voto. Nunca mo revelou, mas sempre me deu boas indicações sobre o que se poderia esperar no dia da votação final (quase sempre contrárias, no entanto, às suas preferências, conforme fui descobrindo).
Finalmente, em maio de 2012, passei uma tarde na sua casa, perto do Palácio da Ajuda, em Lisboa, a entrevistá-lo para uma edição da Visão História dedicada aos Jogos Olímpicos. Foram horas de conversa que, inevitavelmente, apenas uma pequena parte acabou por ser aproveitada na edição final. Mas foi, com toda a honestidade, um pedaço de História que ficou gravado sobre uma das personagens mais fascinantes – e desconhecidas – do desporto português. Agora, na hora do seu desaparecimento, há momentos dessa entrevista que merecem ser recordados, sem interrupções, de forma mais ou menos cronológica e em puro discurso direto. Para memória futura.
ATLETA – “Ganhei as provas todas, mas não fui aos Jogos”
“Comecei na vela, aos 12 anos, na Mocidade Portuguesa, que era a grande escola da modalidade, com alguns bons velejadores, mas mais velhos, como o Fiuza, Herédia, o João Capucho. Andei a leme quase todo o tempo, com resultados razoáveis. No último ano, em Sharpie de 12 metros, ganhei as provas todas, antes dos Jogos de Melbourne, em 1956, mas não me serviu para nada. Os Jogos começavam a 2 de outubro e eu, a 1 de outubro, entrei para o serviço militar…
Mas ainda bem que não fui porque nessa época era um muito bom velejador com ventos médios e fracos, mas com ventos fortes tinha alguma dificuldade. E na Austrália registaram-se ventos fortíssimos.“
Quem decidia tudo era o Tenreiro”
MÉXICO 68
“Nessa época quem decidia tudo era o comandante Tenreiro, que era o presidente da Federação. Ele dava o dinheiro para a Vela e, por isso, tinha que ser o presidente da federação e mandar. A certa altura, modificámos os estatutos, criámos um conselho geral, uma coisa linda para ver se ele passava para presidente desse órgão e deixava que nós mandássemos na federação. Mas ele viu os estatutos, e limitou-se a dizer: ‘sim senhor, estão muito bem. Podem aprovar, mas eu continuo presidente da direção!’.
A verdade é que ele arranjava mesmo o dinheiro, fosse lá nas Pescas ou não sei onde. E, por isso, decidia quem ia às provas e que tipo de barcos iam ou não aos Jogos Olímpicos. Por isso é que fomos para o México, competir em Dragão, num barco que tinha ganho os Jogos Olímpicos anteriores e que o conde de Caria tinha comprado e nos emprestou. O problema é que chegámos lá e percebemos que, quatro anos depois, o barco estava completamente obsoleto. E, ainda por cima, nós não tínhamos a mínima experiencia internacional naquela classe. A classificação foi, naturalmente, muito fraca. Mas o ambiente era formidável. Desfilar na cerimónia de abertura, no estádio olímpico, é algo que nunca nos esquecemos. No México lembro-me que o público, quando viu o nome de Portugal, começou a gritar: ‘Eusébio, Eusébio’”
A festa transformou-se num pesadelo
MUNIQUE 72
“Voltámos a competir na classe Dragão, com um resultado um bocadinho melhor, mas nada brilhante, especialmente para o Mário Quina, que tinha ganho uma medalha de prata em Roma, mas que infelizmente não tinha experiência internacional neste barco.
O maior choque foi no dia dos atentados, mesmo estando em Kiel, longe da aldeia olímpica de Munique. Nós estávamos no mar, e quando chegámos a terra, apareceu a polícia e o ambiente alterou-se por completo. Aquilo que estava a ser uma festa transformou-se num pesadelo. Eu que até tinha pensado ir passar uns dias a Munique, depois das provas, vim logo embora para Lisboa.”
A Federação de Vela estava entregue aos bichos
DIRIGENTE DESPORTIVO
“Com o 25 de Abril dei o salto para o dirigismo desportivo. Tive sempre uma ligação à Federação de Vela, mas mais em comités técnicos. Com a Revolução, o Tenreiro foi engavetado. Depois, no 11 de Março, foi preso o presidente da Federação, que era o Rui Moreira, o dono da Molaflex. A Federação ficou entregue aos bichos e ninguém queria ir para lá, porque senão era logo apodado de fascista. Mas estávamos na época dos plenários. E eu fui a um. Disse para lá umas coisas sobre a Vela e o futuro da federação e, no fim, vieram três rapazes falar comigo: «É pá, tu tens as mesmas ideias que nós.» Eles eram assim um bocadinho para a esquerda, mas convidaram-me para encabeçar uma lista para a direção, que acabou por ser consensual e foi a única a concorrer. Mas a Vela estava de rastos. O nosso plano foi o de fazer o levantamento dos barcos que, em cada clube, podiam ser usados na formação. E foi nisso que investimos as poucas verbas que tínhamos.”
O que nos salvou foi o dinheiro da Coca-Cola
BOICOTE A MOSCOVO 80
“Em 1977, a seguir aos Jogos de Montreal, fui vogal da direção do Comité Olímpico Português (COP), num período conturbado, por causa da invasão soviética do Afeganistão e o apelo do Presidente dos EUA, Jimmy Carter, para que se boicotassem os Jogos Olímpicos de Moscovo, em 1980. Os governos aliados dos EUA apoiaram todos a decisão do Carter, incluindo o nosso. É então que há uma assembleia épica, em que nós decidimos não aceitar o boicote e que o COP iria aos Jogos de Moscovo. Depois, a partir daí, cada federação fazia o que quisesse. E tornámos isso muito claro: nós vamos, mas não obrigamos ninguém a ir.
Alguns atletas começaram, nessa altura, a ficar com dúvidas, nomeadamente o Carlos Lopes e o Fernando Mamede, porque o Governo dizia que lhes dava não sei o quê, que iria pagar a sua presença em meetings onde eles podiam ganhar muito dinheiro, que lhes iam arranjar subsídios. Mas não fez nada, como sabemos… Eles, coitados, enfiaram o barrete. É verdade que o Lopes estava, na altura, com um problema no tendão de Aquiles, mas o Mamede podia ter ido.
Não posso dizer que fomos pressionados pelo Governo. Houve, sim, contactos através do ministro dos Negócios Estrangeiros, o Diogo Freitas do Amaral, a apelar que nós devíamos seguir a indicação do Governo português, e a falar da nossa relação com os americanos.
A verdade é que quando foi anunciado o boicote, a Direção-Geral dos Desportos retirou o seu apoio à preparação olímpica. O que nos salvou, nessa altura, foi a Coca-Cola, que tinha acabado de chegar a Portugal e nos tinha oferecido 4500 contos [cerca de 22 500 euros] para a preparação dos atletas. Na altura era imenso dinheiro. Muito mais do que aquilo que recebíamos de apoios oficiais. E foi com o dinheiro da Coca-Cola que nos governámos e pudemos ir a Moscovo, embora com limitações, só com 11 atletas.”
Tínhamos que ter um sinal português
CHEFIA NOS JOGOS DE MOSCOVO
“Segundo o critério da antiguidade, a escolha do chefe de missão aos Jogos deveria recair no Fernando Ferreira ou no Garcia Alvarez. Mas o Garcia Alvarez, como militar, disse logo que não aceitava, porque podia ser prejudicial para a carreira dele, tendo em conta a posição do governo a concordar com o boicote aos Jogos. O Fernando Ferreira também acabou por dizer que não. Então, perguntaram-me se eu queria ir. E aceitei, até porque a mim não me iam tocar – como não tocaram.
Foram uns Jogos um bocadinho amputados, mas uma experiência muito interessante, até porque me permitiu estar na Aldeia Olímpica, algo inédito para mim, porque as competições de vela, nos Jogos em que participei, ficavam sempre fora de tudo. Mas em Moscovo era uma Aldeia Olímpica muito vazia, por causa dos países que não foram. No nosso caso, por exemplo, estávamos num prédio para aí de 15 andares. E nós ocupávamos os primeiros dois andares e depois só, lá para cima, é que estava a delegação da Nova Zelândia.
Um momento importante foi a reunião, um dia ou dois antes da cerimónia de abertura, em que o COI se reuniu com os delegados dos países cujos governos tinham apelado ao boicote, para saber como nos queríamos apresentar. Muitos países optaram por desfilar com a bandeira do Comité Olímpico Internacional. Mas eu, nesse momento, decidi que íamos aparecer como Comité Olímpico Português – só mais tarde, quando fui presidente, é que mudei a designação para ‘de Portugal’ – e com a bandeira do COP. Tínhamos que ter ali um sinal português. Daí a opção pela bandeira do Comité.”
Nunca permitimos interferências
PRESIDÊNCIA DO COP
“Depois dos Jogos de Moscovo assumi a presidência do Comité Olímpico de Portugal, substituindo o brigadeiro Salles Grade, que se retirou por razões de saúde e de idade. Estive oito anos na presidência do COP. Mas a segunda reeleição já foi combinada, porque o general Pereira de Castro estava para sair do COI e disse-me que iria propor o meu nome para o substituir. Como não tinha tempo para ser membro do COI e presidente do COP em simultâneo, fizemos uma lista em que eu ia como presidente e o Vicente de Moura como vice-presidente. Isto para ele me substituir automaticamente.
O que mais me agrada é que, em Portugal, o Comité Olímpico preservou sempre a sua independência. Desde sempre. Foi assim com a I República, com o Salazar, com o 25 de Abril. Sempre fomos independentes, nunca permitimos interferências. E as tentativas que houve… não tiveram resultados.”
Tive uma pega com o Samaranch, mas continuámos amigos
MEMBRO DO COI
“Quando fui admitido como membro, em 1989, o Comité Olímpico Internacional já não era para mim uma novidade, porque pertencia à comissão cultural do COI desde 1985. E tinha organizado também algumas reuniões das comissões do COI, em Lisboa. Ou seja, isso permitiu-me conhecer e conviver com muitos membros do comité.
A verdade é que eu, nessa época, trabalhava no Ministério do Emprego e não tinha a disponibilidade de outros membros. Participava na Comissão Cultural e intervinha nas reuniões, nas coisas que considerava oportunas. Aliás, o Jacques Rogge disse-me há pouco tempo, com uma certa piada, que só há duas pessoas que leem todos os papéis que saem do Comité Olímpico Internacional: «Eu porque tenho que os assinar e tu porque os lês mesmo!»
Mas também gostava de fazer perguntas, nomeadamente quando foi da revisão dos estatutos, na sequência do escândalo de Salty Lake City, eu fiz muitas intervenções muito. Porque, de facto, tinha propostas e soluções. Nessa altura, tive uma pega com o Samaranch, por causa da rotatividade dos membros da comissão executiva. Ele até deixou de me falar. Só que ele era esperto, um diplomata. E sabia que não valia a pena ter inimigos. Na primeira oportunidade que encontrou já estávamos outra vez aos abraços. Nós éramos amigos!”
Nunca disse a ninguém que lhe dava o meu voto
REUNIÕES DO COI
“O que é o Comité Olímpico Internacional? Bem, é um grupo de senhores que, em principio, sabem de desporto… Eu diria que a maioria sabe de desporto. Políticos estão muito poucos. Todos têm uma base de desporto. E se não a têm também a aprendem depressa, porque as opiniões politicas ali não contam muito. É uma instituição que toma decisões ponderadas, a bem do olimpismo e do desporto em geral, muito positivas. E o desporto é fundamental para a saúde para a educação, para a luta antidroga, para a convivência, para a integração social. Este parece ser um aspeto esquecido, mas que é muito importante: o olimpismo e o desporto são fatores importantes de integração social.
Mas o mais importante é que no COI respeitamo-nos todos uns aos outros. Claro que há uns palermas – desculpe, mas eu chamo-os assim – que querem ser simpáticos e dizem que sim a todos. Eu disse sempre: vou pensar. Nunca disse a ninguém que lhe dava o meu voto nos processos de atribuição da sede dos Jogos Olímpicos. Mas por causa desses palermas, há umas cidades que chegam ao fim da votação e que dizem: como é possível, eu tinha mais pessoas a prometerem-me o voto? Eu nunca fui assim.”
Entreguei uma medalha olímpica a outro português
EMOÇÕES
“Como presidente do Comité Olímpico de Portugal assisti à primeira medalha de ouro portuguesa, em 1984, com a vitória do Carlos Lopes na maratona de Los Angeles. Uma emoção extraordinária. Também estive no estádio, em Atlanta, quando a Fernanda Ribeiro ganhou o ouro. E em Sydney, em 2000, fui o primeiro português a entregar uma medalha olímpica a outro português: a de bronze ao Nuno Delgado.”
As pessoas não sabem aquilo em que se metem
JOGOS OLÍMPICOS EM LISBOA?
“O João Soares, quando era presidente da Câmara de Lisboa, estava com essa ideia. E uma vez, o Samaranch veio cá [em maio de 2000] e disse-lhe, num almoço, com aquele seu voluntarismo e porque gostava de picar as pessoas, que Lisboa tinha todas as possibilidades de os organizar. Eu ouvi aquilo e não disse nada. Depois, fui ter com o João Soares e disse-lhe que se ele queria mesmo avançar com aquela ideia, o melhor era tentar organizar cá primeiro uma assembleia do Comité Olímpico Internacional, para que todos os membros conhecessem a cidade e se interessassem pela candidatura. E dei-lhe um livrinho com o caderno de encargos de uma reunião dessas. Foi remédio santo. Uns dias depois telefonou-me: «Estava maluco, não temos dinheiro para organizar uma sessão do COI, quanto mais uns Jogos Olímpicos!». É que, de facto, as pessoas não fazem a mais pequena ideia naquilo que se metem quando dizem que querem organizar uns Jogos Olímpicos…”
É isso que nos dá independência
OLIMPISMO E DINHEIRO
“Sem dinheiro não se faz nada. Na prática, quanto mais dinheiro melhor. Venham os sponsors, venham os direitos de televisão. Até porque esse dinheiro acaba por ser muito importante na ajuda aos comités nacionais. Repare que nós só temos de preparar os atletas. Depois, a viagem, o alojamento na Aldeia Olímpica, é tudo pago pelo COI, pago com o dinheiro dos patrocinadores. E é isso que nos dá independência. E é por isso que nenhum poder político nos pode ameaçar.”