De tão irritado com a apatia dos jogadores num treino matinal, Sérgio Conceição cancelou a folga vespertina. Era a sua primeira experiência como treinador principal, ao serviço do Olhanense, e não ia admitir faltas de empenho só porque do outro lado estava uma equipa de tostões, dos escalões secundários. Logo ele, que nem entre amigos perdoa uma atitude mais descontraída, como adiante se verá. Em vez da tarde livre, agendou novo treino para as 16 horas. E uma ideia tomou conta do balneário: “Vamos levar uma coça.”
A mudança de planos repentina não caiu bem, mas à hora marcada, equipados a rigor, os jogadores preparavam-se para correr até à exaustão. Conceição começou a falar, exigiu maior compromisso, mais profissionalismo e, ao fim de meia hora, ditou a sentença: “Não há treino nenhum, vão para casa.” A folga perdida era castigo suficiente, a mensagem fora transmitida, não havia necessidade de humilhar o plantel com voltas ao campo para marcar pontos na sua autoridade.
“Ele é muito inteligente na gestão do grupo”, salienta Fernando Alexandre, um médio que Sérgio Conceição levou de Olhão para Coimbra quando foi treinar a Académica, em 2013. “No trabalho ninguém brinca, muito menos com o trabalho dele, mas é tipo para marcar um jantar com os jogadores.”
Certo dia, na cidade dos estudantes, houve mais do que isso. O treinador encomendou frango assado para o balneário e, surpresa geral, abriu a porta a um convidado inesperado, o amigo Fernando Rocha, conhecido contador de anedotas. Uma iniciativa que haveria de repetir em Braga e Guimarães, mas com raízes nos tempos em que Sérgio Conceição representou a Seleção Nacional.
“À revelia do selecionador [Scolari], entrei à socapa no hotel e fiz uma sessão de anedotas no quarto do Figo para todos os jogadores”, conta Fernando Rocha, sobre o momento de humor improvisado em pleno estágio de preparação para o particular Portugal-Brasil, no Porto, em março de 2003. Com golos de Pauleta e Deco, a vitória sorriu a Portugal (2-1). “Quando duas pessoas partilham uma gargalhada tornam-se mais próximas”, defende o humorista, convencido de ter ajudado ao resultado favorável.
Sangue de dragão
Churrascos, sessões de paintball, audições de concertina e corridas de kart são outras fórmulas utilizadas por Sérgio Conceição para contrabalançar a exigência máxima nos treinos e fortalecer os laços de união com os jogadores. Foi no FC Porto, onde chegou aos 16 anos, que aprendeu a importância do coletivo, ao lado de jogadores carismáticos como João Pinto, Jorge Costa, Paulinho Santos ou Domingos Paciência. Não é por acaso que fala sempre em “nós” e nunca em “eu”. Nem é à toa que, com ele, os jogadores têm de comer a relva, como se diz na gíria futebolística.
“Não há dúvida de que recuperou referências do passado para o clube, a base do que fez sempre do FC Porto campeão. Ele sabe como ganhar. Viveu isso no convívio com outros jogadores e trouxe para esta equipa o espírito vencedor, a capacidade de trabalho e uma forma especial de encarar os jogos”, observa Domingos, um dos amigos, não muitos, que ficaram dos tempos de jogador.
O que Sérgio Conceição não sabe é brincar ao futebol ‑ nem entre amigos. São famosos os convívios que organiza na Mealhada, onde mantém a casa de família. Anfitrião dedicado, sempre pronto a partilhar as melhores garrafas de vinho, a coisa dá para o torto ainda antes de almoço quando a habitual futebolada não corre de feição. Já aconteceu roubar a bola e acabar com a “festa” antes de tempo e são inevitáveis as reprimendas aos colegas de equipa, como aquela em que perguntou a um convidado se estava a dormir e este lhe respondeu para ter calma, que era apenas uma brincadeira. “Só se for para ti. O melhor é ires para a bancada”, retribuiu Conceição.
“É impossível quando perde, durante dois dias não se pode falar com ele”, atira Jorge Manuel Mendes, o amigo que também é empresário de jogadores e o ajuda na gestão da carreira. Pior, acrescenta, só quando o treinador esteve alguns meses sem trabalhar, entre a saída do Vitória de Guimarães, em junho de 2016, e a chegada ao FC Nantes, de França, em dezembro do mesmo ano. Ainda hoje se riem da história de um bibelô que tinha em casa e com o qual Sérgio decidiu embirrar. O que levou a mulher da sua vida, Liliana, com quem se casou aos 20 anos (tinha ela 17), a desabafar com Jorge Manuel Mendes: “Veja lá se arranja qualquer coisa para ele porque já não se pode aturar.” O bibelô estava no mesmo sítio há cinco anos.
Sérgio Conceição é o primeiro a reconhecer o feitio difícil, inconformado, de “eterno insatisfeito”, como ainda agora o resumiu, na celebração do título de campeão, no último fim de semana. Após uma vitória recente, ainda com as contas do campeonato em aberto, chegou sorumbático para cumprimentar Pinto da Costa. “Ó Sérgio, anima essa cara, cara alegre”, disse-lhe o líder portista, ao que o treinador ripostou com um “deixe lá isso, presidente”, adiando os sorrisos.
Está-lhe no sangue esta ânsia de ir à luta, de competir e ganhar. Sempre esteve. Alimenta-a uma revolta forjada no berço e acentuada na adolescência, com a morte precoce dos pais. “O meu carácter foi formatado e ganhando forma com todas as dificuldades por que passei”, afirmou, há dois anos, numa entrevista à revista Flash, assumindo a tal “vontade de querer chegar” e “de querer justificar sempre”, por se sentir “em dívida” com o que os pais fizeram por ele. “Tenho de os orgulhar sempre, durante a minha vida toda.”
Fiel a si próprio
Era o pai que o levava aos treinos na Académica, à boleia de uma motoreta desde a aldeia de Ribeira de Frades, a terra natal, a meia dúzia de quilómetros de Coimbra. Ali deu os primeiros passos e recebeu o primeiro salário – 15 contos, com idade de juvenil – além da ajuda com livros escolares. Com sete irmãos todo o apoio era bem-vindo. O infortúnio chegou um dia depois de assinar contrato com o FC Porto. O pai não resistiu a um acidente de moto, a mesma que tantas vezes guiara para o levar aos treinos em Coimbra. E, dois anos mais tarde, perderia também a mãe, vítima de doença.
Foi ao recordá-los que lhe vieram as lágrimas aos olhos, durante a festa do título que quebrou um ciclo de quatro anos de jejum portista. Na casa da aldeia onde moravam, a zona do lume a lenha, na cozinha, permanece intocada, por vontade de Sérgio Conceição. Atribui-lhes o sucesso que teve no futebol. Não é a primeira vez que fala deles. Em Braga, quando puseram em causa a entrega da sua equipa frente ao FC Porto, supostamente já a pensar no jogo seguinte com o Benfica, soltou: “Nunca na vida eu pensaria em tirar o pé do acelerador contra qualquer equipa. Nem que tivesse o meu pai, a minha mãe e os meus filhos do outro lado. Agarrava nas malas e ia-me embora. Eu não sou igual a esses comentadores, dirigentes e ex-futebolistas que comentam na televisão. Sou diferente.”
Na época seguinte, já em Guimarães, sentiu outra vez o seu profissionalismo posto à prova, quando defrontou os dragões convencido de que iria assumir logo depois o comando técnico do FC Porto. Acusado de falta de ética, respondeu com um triunfo (a transferência cairia por terra). “Posso ter muitos defeitos, mas há princípios que os meus pais me passaram e dos quais não abdico, como a dignidade, a honestidade e a frontalidade”, declarou na altura. Sportinguista em criança, apaixonou-se em jovem pelo FC Porto, mas a camisola que veste “por dentro é a da cor da pele”. Acima de qualquer clube, Sérgio Conceição é fiel a si próprio.
Não é por isso de estranhar que o filho Rodrigo, de 18 anos, represente o Benfica. Nem que Francisco, três anos mais novo, tenha jogado até à época passada no Sporting (mudou-se entretanto para o Padroense). Ou que Moisés, de 17, esteja agora no FC Porto. Há ainda Sérgio, o filho mais velho, de 21 anos, ao serviço do SC Espinho, e José, que aos dois anos já dá uns toques lá em casa. Com o regresso de Conceição ao FC Porto, no arranque desta temporada, surgiram notícias sobre a possibilidade de desviar Rodrigo da Luz para o Dragão, mas tudo não terá passado de especulação. “Impossível. Nem o Sérgio permitiria uma coisa dessas”, garante Jorge Manuel Mendes, que o conhece desde miúdo.
Guerra e paz
Mal-educado e arrogante ou rebelde e genuíno? Direto, com certeza, doa a quem doer. Sérgio Conceição nunca foi de meias tintas. “Tem um coração enorme, não aceita injustiças, quando é amigo é amigo, não faz fretes a ninguém”, dispara Domingos Paciência. “Um homem de afetos, sem medo das palavras, que ainda o rastilho não chegou ao fim e já está a explodir”, descreve Toy, o cantor de música popular portuguesa que é amigo de longa data de Sérgio Conceição, fã assumido do tema Estupidamente Apaixonado – a ponto de ter ouvido a canção num concerto em Caxinas, através do telemóvel de um ex-companheiro no FC Porto, quando se encontrava na Grécia, a jogar no PAOK. “As pessoas com sentimentos precisam de exorcizar mágoas e revoltas, mas ele está mais maduro. E sempre teve a humildade suficiente, uma humildade autêntica, para reconhecer os erros e pedir desculpa”, sublinha Toy.
José Eduardo Simões e António Salvador, com quem o treinador chocou de frente e esteve na iminência de partir para a violência física, revelam que esses episódios estão ultrapassados. O antigo presidente da Académica e o homem que se mantém à frente do Sporting de Braga atestam a capacidade de Conceição para enterrar o machado de guerra com a mesma facilidade com que faz peito quando lhe chega a mostarda ao nariz. “Tem sangue na guelra, mas dali a pouco já não se passa nada. É uma pessoa de bem, decente, não é maldoso”, diz o primeiro, que agora troca mensagens por telemóvel com o treinador, mas ouviu das boas e quase foi agredido depois de o ter provocado numa visita da Académica a Braga, em 2015. Já Salvador, que despediu Conceição por “insultos e ameaças de agressão de uma forma desabrida e tempestuosa” e se queixou do carácter “conflituoso, autoritário e agressivo” do treinador, elogia-lhe hoje a “qualidade humana”. A paz ficou selada no Algarve: “Tenho de reconhecer publicamente o gesto que ele teve. É preciso uma enorme humildade e um grande carácter para esquecer um episódio menos feliz como aquele que vivemos.” Até Waldemar Kita, o presidente do FC Nantes, que ficou magoado pela saída de Conceição para o FC Porto pouco depois de ter renovado contrato com o clube francês, já admitiu que as feridas estão saradas.
Nem sempre acaba tudo bem. A Luiz Felipe Scolari dificilmente perdoará algum dia, embora seja um homem religioso, devoto a Jesus Cristo, que não falha a missa dominical, não bebe nem come carne na Quaresma e vai a pé a Fátima. Só que o brasileiro tirou-lhe o prazer de representar a Seleção Nacional, afastando-o de vez após uma derrota por 3-0, em junho de 2003, num particular frente à Espanha. Saiu ao intervalo e nunca mais voltou. Tinha 28 anos – e um hat-trick histórico à Alemanha, no Euro 2000, para contar aos netos.
A passagem por Itália terminaria na época seguinte ao adeus à Seleção, com o regresso ao FC Porto, de José Mourinho, campeão europeu sem o contributo de Sérgio Conceição, que não podia atuar na Liga dos Campeões por já ter jogado pela Lazio na primeira metade da temporada. Era o percurso inverso ao que tinha seguido em 1998, após dois anos fulgurantes nas Antas, na campanha rumo ao penta (esteve no terceiro e no quarto títulos). De quatro mil euros mensais passou a receber 100 mil, aliando o sucesso desportivo à estabilidade financeira, depois reforçada com as experiências no Parma e no Inter de Milão.
Para treinar agora o FC Porto, aceitou perder dinheiro. Em Nantes, ia arrecadar mais de quatro milhões de euros por cada ano de contrato. Na Invicta, ficou-se pela metade, o que mereceu o reconhecimento público de Pinto da Costa. Se vai ou não continuar na próxima época, depende dos desafios que lhe chegarem do estrangeiro e da disponibilidade do presidente portista para o libertar do segundo ano de contrato. Se ficar, está em casa.