O prémio extra domina as conversas dos jogadores durante a semana. Vem mesmo a calhar, para compensar os salários em atraso. Há rumores de vários interessados em contribuir. Afinal, a Académica de Coimbra está à beira de regressar à I Liga de futebol, após nove anos presa na segunda divisão. Atiram-se palpites no balneário: o bolo total, acreditam, dará entre mil e dois mil contos a cada um, em caso de vitória sobre o Estoril. O treinador Vítor Oliveira é questionado, mas diz-lhes que desconhece qualquer incentivo monetário. “Falem com o presidente.” A incerteza mantém-se até ao dia do jogo, 1 de junho de 1997. Plantel reunido, Campos Coroa pede a palavra e saca um papel do bolso. Está ali o valor do prémio, sente-se no grupo. O líder da Académica começa a ler:
Ergue-te, sonho!
Definido
Preciso
Seguro de ti próprio
Grita bem alto o teu direito a existir!
Salta barreiras
Rasga caminhos
Faz-te poema
a escorrer vida forte e consciente
Ergue-te sonho!
Não sejas só um pensamento estéril
tocando o infinito
em ânsias de absoluto…
Desce mais baixo
Sê imperfeição e sofrimento e dor
Realiza-te p’ra seres humano
Não te atormentes mais…
Palavras bonitas, números nem vê-los. “Foi um choque tremendo”, ri-se Vítor Oliveira, 20 anos depois. “Os jogadores ficaram revoltados, mas ganhámos 3-0 e subimos de divisão.”
É o que ele sabe fazer, hoje é certo e sabido. Na história do futebol, não existirá outro treinador no mundo a ter conduzido dez clubes (e dez cidades) à divisão principal. Embora impossível de confirmar este dado com todo o rigor, a fama galgou fronteiras. Em Espanha chamam-lhe “elevador automático” e “técnico milagre”. Em França é o “especialista em missões de curta duração”, por ser muito raro continuar nos clubes que sobe.
Só nas últimas cinco épocas, a história repetiu-se ao comando do Arouca, Moreirense, União da Madeira, Chaves e, agora, Portimonense. A Trás-os-Montes e ao Algarve, as paragens mais recentes, chegou depois de lhes ter ‘roubado’ a subida no último suspiro da temporada anterior. De maldito a desejado, com festa certa no final. Razões para um salto a Portimão, ao encontro deste filho de Matosinhos que fintou a pesca e o curso de engenharia eletrotécnica para se doutorar, já sexagenário, em geografia de primeira divisão.
Um ano de cada vez
Não orientar o Leixões enquanto o pai for vivo. É esta a única restrição familiar de Vítor Oliveira, quando decide seguir a carreira de treinador, em 1985. Já tinha jogado no clube da terra, nos anos 70, e o pai, além de se incomodar com as críticas ao filho, sentia-se constrangido na presença dos amigos. Com ele a treinador, seria ainda pior. Era um mestre conhecido em Matosinhos, com uma vida boa na pesca, embora dura. A mãe de Vítor também estava ligada ao negócio – como peixeira no mercado do Bom Sucesso, no Porto –, mas nunca o levaram para o mar. Empurram-no antes para os estudos e ele, bom aluno, escolheu a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto. Por essa altura, começou a ganhar 4 contos por mês (cerca de 20 euros) nos seniores do Leixões e comprou dois carros, um em segunda mão, por 9 contos, e o outro, um Fiat 127 novo. A bola dava bom dinheiro, mas o curso só ficaria completamente de parte já em fim de carreira, quando deixou a zona de conforto, no Norte do País (o mais longe que tinha ido era Braga), e foi jogar para Portimão. É aqui, nesta cidade algarvia onde agora almoçamos salmonetes grelhados (não havia carapaus), que Vítor termina a carreira de futebolista e inicia a de treinador, aos 31 anos, por indicação de Manuel José, então de saída para dirigir o Sporting.
Uma sugestão sem espinhas. Nas mais de três décadas que passaram até regressar ao Portimonense, Vítor Oliveira nunca teve empresário, negociou sempre contratos ano a ano e jamais ficou uma época inteira sem trabalhar. Um exemplar gestor desportivo de si próprio. “É simples: no fim do campeonato, se as duas partes estiverem de acordo, é muito fácil prolongar o contrato por mais um ano; se uma das partes não quiser, vai cada uma para o seu lado”, atira, pragmático. Para quem não valoriza as indemnizações que poderia arrecadar se tivesse mais dois ou três anos de vínculo, só existem vantagens: nem o clube precisa de fazer contas à vida para o dispensar, nem ele se sente amarrado ao lugar. “Sempre me dei bem assim e não é agora, com 63 anos, que vou mudar.”
Já muitos dirigentes sentiram a frustração de não o conseguirem manter no cargo, após subidas de divisão. Campos Coroa, talvez por ter sido o primeiro a levar uma dessas negas, “foi quem mais ficou ofendido”. Nem a criativa declaração pública de interesse demoveu Vítor Oliveira, que se lembra de o ler numa entrevista. “Se for preciso, juntamos uns autocarros de estudantes e vamos lá a Matosinhos obrigá-lo a ficar na Académica.” Mais depressa o cercava em Leiria, para onde o técnico seguiu rumo a mais uma subida.
Ficou a amizade, como aconteceu recentemente em Arouca e em Chaves.
Com uma diferença: quando comunicou que não ia continuar, os dirigentes estavam já mais do que preparados. “Você é que sabe”, resignou-se Carlos Pinto, logo à segunda abordagem falhada em Arouca. “Então ajude-me a escolher o próximo treinador”, pediu-lhe Francisco Carvalho, também à segunda conversa, em Chaves. “As pessoas já perceberam a minha forma de atuar. Não é nada contra uns ou outros. Se conseguirem convencer-me é que é uma vitória deles”, nota Vítor Oliveira, que no caso do Portimonense diz ser “perfeitamente possível” acertar a renovação e saltar para a Liga principal. Só o fez por duas vezes: em Paços de Ferreira, há 26 anos, e no Belenenses, há 18 anos.
Primeira vs segunda
“Capricha”, “Ganda bola”, “Linda”. Vítor Oliveira está na sua praia, divertido e orgulhoso dos seus rapazes. As indicações sucedem-se. “Vá, vá, há muita correria, hoje não é preciso correr muito, é só ter gosto em ter bola.”
Consumada a décima subida à I Liga, o ambiente no treino do Portimonense é de descompressão, e as mensagens para os jogadores visam manter o foco no título de campeão, nas poucas jornadas que restam. “Gosto de viver o presente, a minha preocupação com a próxima época é praticamente zero”, há de garantir-nos mais tarde. Nota-se. “Ó doutor, ninguém viu, não se preocupe”, grita para o diretor financeiro do Portimonense, a acabar o treino, perante a ineficácia de Edgar Vilaça ao tentar dominar uma bola chutada para fora do campo. “Veja lá é se não matou aí uma barata… E nunca mais diga nada sobre futebol.” Risada geral, com a administração em peso por ali.
É o cheiro a vitória e a sucesso que o seduz no escalão secundário. Dá-lhe um gozo sem preço ter mais golos marcados, menos sofridos, ganhar. E depois de uma carreira entre clubes da segunda metade da tabela na divisão de cima e clubes da primeira metade da tabela na divisão de baixo, ninguém o pode levar a mal por, desde 2008, dar prioridade aos segundos. “Prefiro os projetos de subida a andar ali com as calças na mão a lutar para não descer. Na segunda liga tenho um bom ordenado e um prémio de rendimento, não haverá grandes diferenças a nível financeiro. Se calhar até é melhor. E desportivamente estou muito mais perto do êxito”, explica o treinador, sem esconder que nos últimos anos recebeu convites “de clubes aliciantes” da divisão principal, capazes de acrescentarem valor na conta bancária, mas nem chegou a discutir números.
“Surgiram a meio da época e eu nunca interrompo um contrato.”
A fama de nómada infalível também empurra Vítor Oliveira para o escalão secundário. Há dois anos, quando subiu o União da Madeira e deixou o Desportivo de Chaves pelo caminho, recebeu, dias depois, uma chamada de Trás-os-Montes. Foram ter com ele ao Porto e, “em 10 minutos”, chegaram a acordo. Mais tarde ficou a saber, da boca do próprio, que Fernando Carvalho o tinha insultado forte e feio, numa primeira reação do dirigente do Chaves à mera sugestão do nome Vítor Oliveira para próximo treinador. Em boa hora se rendeu, e o mesmo já deve ter pensado Theodoro Fonseca, o brasileiro que gere o futebol profissional em Portimão (é também empresário de jogadores, como Hulk). Logo no dia a seguir ao clube ter falhado a subida, há coisa de um ano, o acionista maioritário encontrou-se na Invicta com o suspeito do costume. Aposta certeira: até hoje, Vítor Oliveira só perdeu dois desafios para subir, no Rio Ave (2001) e no Trofense (2010).
Engenheiro de plantéis
No Leixões, onde também alcançou a subida, em 2007, já após a morte do pai, o treinador da terra contou com a preciosa ajuda do guarda-redes Beto, que acabaria depois por ser contratado pelo FC Porto e chegar à seleção nacional (atualmente é suplente de Rui Patrício, no Sporting). Nem o conhecia, quando um amigo, “especialista em guarda-redes”, lhe falou nele. Desconfiado dos números que davam o titular da baliza do Marco de Canaveses como o mais batido da II Liga, consultou o treinador da equipa, Vítor Paneira, seu antigo jogador no Vitória de Guimarães. “Mister, à confiança, é excelente.”
A rede de contactos voltava a dar frutos. Apesar de conhecer a grande maioria dos jogadores, Vítor Oliveira não avança para reforços sem ouvir várias pessoas. Além da valia técnica, interessa-lhe o perfil social e psicológico, ou seja, a capacidade para se integrar no grupo e a forma de reagir, por exemplo, “perante a adversidade ou o êxito”.
Com Paulinho, o médio brasileiro que recusou no início desta época (apesar de sugerido pelo acionista maioritário) e acabou por ser fundamental na campanha do Portimonense, mudou de ideias à última hora. Ao recolher informações junto de quem o conhecia, os elogios ao talento colavam-se a comentários depreciativos sobre a forma de se comportar em equipa. Até que Vítor Oliveira se cruzou em Matosinhos com o treinador de guarda-redes do Farense, onde o esquerdino de 22 anos tinha jogado na temporada anterior, e além das maravilhas sobre a qualidade técnica ouviu que seria capaz de o “domar”.
“Dou uma importância tremenda à construção do plantel. Acho mesmo que os campeonatos se ganham na escolha dos jogadores ou pelos menos damos aí um passo de gigante ”, considera o treinador. Na sua política, cabem nomes sugeridos por dirigentes e empresários, desde que tenha a última palavra. Mas garante nunca ter entrado em choque por causa disso em qualquer dos 17 clubes por onde passou. No Arouca, a revolução foi maior do que o normal. Tinha carta branca para escolher, desde que não excedesse o orçamento definido, controlado pelo filho do presidente. Já havia vários reforços garantidos quando o líder Carlos Pinto o contactou, preocupado: “Ó Vítor, o senhor sabe o que anda a fazer?”; “Então porquê presidente, o que se passa?”; “O que se passa é que aqui em Arouca ninguém conhece os novos jogadores”; “Não se preocupe, vamos ter boa equipa. Não precisamos de grandes nomes, precisamos é de gente que jogue bem.”
Jogadores como filhos
“Comida, dormida e um par de calças.” Basta isto para Manafá assinar contratos, brinca Vítor Oliveira, no treino do Portimonense. “É uma festa. Nem precisas de dinheiro. Tacho, dormida e já agora uma calcinha também, para o estilo”, sugere o treinador, perante a boa disposição deste jovem de 22 anos que “precisa de um clique para expressar tudo o que está ao seu alcance”.
Sente por ele um “grande carinho”, extensível aos restantes. “Para mim os jogadores são família.” Por isso é que, por vezes, ouvem o que não queriam ouvir. “Os meus filhos são as pessoas de quem mais gosto e também sou duro com eles, quando tem de ser.” Umas vezes respondem-lhe, noutras calam-se e há quem chore, de nervosismo. “Não são mais fracos por causa disso.” O que não pode acontecer é punir alguns e fechar os olhos a outros: “Os jogadores são extremamente perspicazes e notam rapidamente quando não há critério nem justiça. É uma situação que provoca um mau-estar tremendo num balneário.”
Em hora e meia de treino, Vítor Oliveira mantém conversas particulares com mais de meio plantel. É uma imagem de marca. “O cérebro dos jogadores precisa de ser muito trabalhado, tal e qual o músculo. Um jogador de cabeça limpa rende muito mais”, justifica. Nos alongamentos finais, o diálogo com Pires e Zambujo deriva para temas mais triviais, como a melhor sangria de champanhe das redondezas. É mais uma vantagem de andar lá em cima na classificação: pode falar-se sobre tudo, que é apenas um reflexo do bom ambiente que se respira. “Eles sabem que de um lado está o treinador e do outro está o jogador. Quando estamos a trabalhar, somos rigorosos, fora do trabalho, conversamos, brincamos e até conto anedotas.”
Uma chamada de um amigo interrompe a conversa com a VISÃO. Reclama um almoço em falta. Não é do grupo da mariscada e do leitão, que se reúne a cada subida de divisão – a propósito, já são 12 no total e não 10, uma vez que no Maia e no Paços ascendeu à segunda. É um outro “compromisso sagrado” que já devia estar realizado, admite, antes de se despedir com uma certeza: “Sabes que eu não falho”. Sabe o amigo, sabemos nós, sabe toda a gente.
Segredos das subidas segundo o ‘mister’
1 – Paços de Ferreira (1990/91) – Trabalho, compromisso, paixão, família
2 – Académica (1996/97) – Estudantada fantástica, boa vontade dos atletas
3 – União de Leiria (1997/98) – Rigor e grande qualidade do plantel
4 – Belenenses (1998/99) – Qualidade do plantel e estrutura muito profissional
5 – Leixões (2006/07) – Paixão, boa equipa, bairrismo
6 – Arouca (2012/13) – Dedicação, amor, resiliência
7 – Moreirense (2013/14) – Qualidade do plantel e organização do clube
8 – União da Madeira (2014/15) – Empenho dos jogadores, os grandes obreiros
9 – Chaves (2015/16) – O triunfo do presidente
10 – Portimonense (2016/17) – Bom plantel, boa administração, boa cidade
(Artigo publicado na VISÃO 1261 de 4 de Maio de 2017)